A boa-macaca e o monte de palha
Naquela aventura amazônica, os forasteiros éramos Nilton, Daniel, Gustavo e eu. Tínhamos acabado de concluir o terceiro ano do curso de graduação em Geologia. Passamos três meses embrenhados na mata, participando de uma pesquisa de cassiterita, um valorizado minério de estanho. A mata e sua gente simples foram uma fonte de incontáveis e inesquecíveis ensinamentos, talvez nunca consiga assimilá-los todos. Alguns certamente permanecerão lá ocultos nas sombras do mais arraigado íntimo, a observar-me, a sugerir-me e a censurar-me, na quietude da memória da qual temos pouca consciência.
Uma dessas lições dadas pela mata veio da boa-macaca. Era assim que os peões mateiros chamavam aquela árvore que até hoje não sei qual seja. Sei que era uma leguminosa parecida com o angico, mas é tudo que me lembro de sua aparência.
Nos nossos levantamentos, tínhamos que erguer acampamentos no meio da mata, onde permanecíamos baseados por períodos de duas a três semanas. Os acampamentos, feitos com o tronco e as folhas da generosa palmeira açaí, tinham um rancho maior, onde ficavam as redes com os mosquiteiros, e um rancho menor, que servia de cozinha e refeitório quando chovia.
Uma das primeiras preocupações dos peões mateiros quando assentávamos um novo acampamento era encontrar nas proximidades uma árvore da boa-macaca de bom tamanho e formato. O tronco tinha que ter o diâmetro aproximado de meio metro e ser alto o bastante para fornecer pelo menos três cepos retos com cerca de um metro e meio de comprimento. Os peões estimavam que assim os cepos prestariam seu serviço pelo tempo que parássemos naquele acampamento.
Na primeira vez que vi os peões mateiros enveredarem-se pela mata logo após terminarem a construção dos ranchos, munidos de machados e terçados, e voltarem carregando os troncos verdes, nada entendi. Pacientemente, os peões então nos explicavam que os troncos da boa-macaca eram a alma do acampamento. Eles eram arranjados de forma radial, só as pontas se tocando, regularmente espaçados. Depois, teimosamente os peões faziam fogo no centro dos cepos calculadamente afastados, com ajuda de um pouco de querosene que traziam para esse fim e de algum material seco que se pudesse encontrar na mata úmida. Insistiam até que as pontas dos troncos verdes começavam a virar brasas rubras, que se alimentariam por si sós ao longo dos dias que parássemos naquele acampamento. Não chegavam a se formar labaredas, mas o calor era intenso, e as brasas não se extinguiam. Bastava ir reaproximando os troncos de tempos em tempos, quando a resinosa madeira, aos poucos, ia desfazendo-se ao devolver para a natureza a energia do sol que havia armazenado.
E fui aprendendo por que os peões diziam que a boa-macaca era a alma do acampamento. Naquela época do ano, chovia torrencialmente quase todos os dias, a mata impregnava-se de uma umidade que a tudo encharcava. E era no rancho da boa-macaca que tudo acontecia. Lá eram feitas as refeições e o café. Lá, sentados sobre os troncos que tinham a altura certa, nos reuníamos e conversávamos sobre o andamento do trabalho, sobre nossas cismas, sobre os causos da mata e dos homens, sobre a cidade que ficara tão distante. Lá vagueávamos em devaneios no rubro braseiro das três toras. Lá nos aquecíamos quando chegávamos ensopados depois de uma longa caminhada sob a chuva. Lá escapávamos do assédio dos incansáveis piuns e carapanãs, que evitavam o discreto cheiro de fumaça. Lá pendurávamos e secávamos a roupa lavada no igarapé ao lado do acampamento. Lá os peões picavam o fumo preto em corda e enrolavam os cigarros de palha de milho que seriam a companhia da longa caminhada do dia seguinte.
Quando, ao final do dia, retornávamos de uma extenuante jornada de trabalho, ao nos aproximarmos do acampamento o fogo da boa-macaca recebia-nos com tímida discrição. Dir-se-ia que por ali não havia fogo nenhum. Só com muita atenção dávamo-nos conta de um fiozinho de fumaça subindo do encontro das três toras. Mas bastava um sopro, um abano, e as brasas revelavam-se dadivosas de sob as cinzas. Então era aproximar um pouco as pontas das três toras, e o braseiro avivava-se, trazendo vida também ao acampamento, que era nosso lar em meio ao profundo ermo do seio da mata. E, diziam os peões, na escuridão da noite, enquanto dormíamos enfiados nas redes com mosquiteiros, a boa-macaca continuava a proteger-nos, pois apesar da falta de labaredas, os animais mais bravios evitavam o cheiro de fumaça. Já tinham aprendido a temer o fogo.
Numa ocasião, terminado o período de permanência num dos acampamentos, retornamos de barco para a sede da fazenda, que ficava numa clareira em uma curva à beira do rio. Quando nos aproximávamos, no lusco-fusco ao cair da noite, ainda no barco, antes de avistarmos o casario, vimos um clarão forte para os lados da fazenda. Parecia que uma grande fogueira nos esperava. Não pudemos deixar de imaginar que a sede da fazenda, muito mais civilizada que nosso rancho no meio da mata, deveria ter lá seu fogo proporcional, muito maior que aquele da nossa boa-macaca. Mas ao apoitarmos, encontramos somente as cinzas do que fora uma casual e fugidia queima de um monte de palhas pouco antes da nossa chegada, e que já se extinguira.
Naquela noite, tive uma compreensão inédita daquela expressão tão antiga e tão comum -- “fogo de palha”. Muita visibilidade, pouca durabilidade, pouca utilidade. E, como nunca, dei graças ao fiel, acolhedor e discreto amparo do fogo manso da nossa boa-macaca.
Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).