ESTABILIDADE TÃO SONHADA ( com modificações)
O sonho de muitos brasileiros nos dias atuais é passar em um concurso. Ser servidor público. Ter estabilidade. Mas, será que tudo isso não é uma loucura total? Eu sou uma dessas sonhadoras!
Terminei a faculdade nos anos noventa, mas, na minha época, não se falava tanto sobre estágios ou concursos. O que estava na moda era ser empresário. O cara abria uma bodega, e na hora de preencher o cadastro para fazer compra em uma loja, ele colocava no espaço pontilhado de profissão: empresário.
O sonho de se tornar milionário da noite para o dia. A baixa do dólar, o crescimento repentino do país. Mas, foi uma etapa breve, pela qual eu passei. Fase premiada com muitos fracassos nesse ramo, tendo em vista que os altos impostos, os encargos sociais e a inconstância financeira que se manifestou naquela época foram cruciais aos empresários do país.
Naquele tempo, eu havia casado, tinha filhos pequenos, e vendia para outras lojas, de repente a “bomba”, falência e quebra total. Os cheques sem fundos voltavam sem parar, e quem deu não tinha como pagar ou havia sumido sem notícia deixar. Desesperada, e vendo o mundo desmoronar a meus pés, eu vi a luz. A luz que tantos brasileiros passaram a ver, o novo milagre, o concurso público.
Agora, eu pensava em ser servidora pública. Palavra bonita, cheia de peso! Sugere estabilidade, dinheiro certo no final do mês. Como servidor público, você pode ter um orçamento certo, financiar um carro, uma casa, ter um padrão de vida.
É lógico que não dá para ser rico, mas quem quer ser rico? “Eu só quero é ter estabilidade”, é o que todos dizem. Mas, aí, começa a luta. Hoje, os universitários já saem da faculdade com diploma de concurseiro. Insensatez geral, a gente só falta entrar em parafusos.
E quando não se é mais tão jovem? Não tem mais os pais para sustentar! Muito pelo contrário, temos é que nos virar para cuidar da casa, dos filhos, do marido e ainda ter um trabalho de tempo integral, para tentar pagar as contas. E como é que se faz? Logo surgem os que se dizem incentivadores, e dizem: “Difícil! Porque para passar em um concurso, nos dias de hoje, você tem que dedicar tempo integral para os estudos”. E aí, a gente coloca a mão na cabeça e se pergunta: “Então quer dizer que eu não tenho chance?”
Depois, vem o que sente peninha de você, e diz: “É difícil, mas, você consegue! Basta só dedicar algumas horas do seu dia, cerca de cinco ou seis”.
Pronto, penso eu! E agora? Deixe-me ver!
Eu acordo às cinco e quarenta da manhã, chamo as crianças para se arrumarem para o colégio, faço o café, grito novamente com os meus filhos para acordarem. Eles escovam os dentes, se arrumam, e, depois de muito rebuliço, eu consigo fazer irem estudar.
Sete horas. Ajeito as coisas em casa bem ligeiro, banho, me arrumo e corro para o trabalho. Afinal, as horas voam. A manhã é corrida, intensa e muito movimentada.
Meio-dia, corro para almoçar em casa, só uma hora disponível. O tempo é tão limitado, que mal dá para engolir e resolver todas as pendências que ficaram e volto correndo.
Dezessete horas, em casa. O cansaço já tomou conta de mim. Mas, ainda não acabou. Tem os deveres do colégio, o jantar, o banho delas, e depois, finalmente, eu posso entrar no chuveiro e me jogar na cama.
Olho para o relógio, são vinte horas e trinta minutos. A cabeça quer estudar, o corpo e os olhos não colaboram. A batalha é dura, dois contra um. Uma guerra se trava dentro do organismo. Os pensamentos não conseguem se entrelaçar, o sono e o cansaço vencem.
Mas decidi! E preciso ser servidora, ter estabilidade na vida. Tenho que dar um jeito. Já sei! Eu durmo cedo, e, ao invés de acordar às cinco e quarenta horas da manhã, eu me levantarei às duas horas, e assim, consigo estudar.
No outro dia, o despertador toca às duas horas, como em um quartel, eu pulo da cama, lavo o rosto com bastante água, bebo um copo de água bem gelado, mas, como o sono é persistente, tomo um café preto. O café é amigo e companheiro nesta batalha.
Pronto! Agora tem que dar certo! Começo a estudar. Língua portuguesa; informática, e o tal do raciocínio lógico. No meu tempo, lógica era uma coisa, agora é outra completamente diferente. É cheio de fórmulas, parece matemática.
Não vejo lógica na lógica, muito pelo contrário. Mas, preciso saber o básico de todo o concurso: português, informática, raciocínio lógico, direito constitucional e direito administrativo. Isso porque eu tenho me dedicado à área do direito, já que nos concursos de outras áreas, encontramos, além das matérias já citadas, a administração, a matemática financeira, a ética, e até uma tal de arquivologia.
De onde tiram tanta matéria para um concurso. Fora as que eu citei, ainda existem bem mais, das quais eu não tenho nem ideia dos nomes. E os Regimentos Internos? Cada órgão tem um. Estudei tantos, que nem sei mais qual é de quem.
E a informática? Não é necessário saber só como se imprime, escreve, copia, cola e entra na internet? Mero engano. Eles perguntam qual o cabo que liga não sei onde, e coisas do gênero. E como é que eu vou saber disso? Eu nem tinha ideia de que precisava ser técnico em computador. Pensei que era só para saber usá-lo. Será que eles não têm um departamento especialista em informática? Será necessário que eu saiba essas coisas?
E a língua portuguesa? A gente tem certeza de que sabe. Estuda, estuda, estuda e continua sem saber de nada. O que foi que eu esqueci? Quando falamos em concurso, ouvimos logo as pessoas comentarem: “Português, eu não preciso estudar, pois eu sei tudo!”
Sabe? Como? Ninguém sabe tudo! Sabe? Os conhecimentos são infinitos. Podemos mesmo saber tudo sobre um assunto? Não será convencimento demais? Afinal, a língua portuguesa é tão complexa! Aí, eu me desespero! Pois eu não sei tudo de forma alguma. Muito pelo contrário, ainda tenho muito que aprender. E agora? O que será de mim?
E as madrugadas se passam e as noites de sono se tornam cada vez mais curtas. É muita matéria, muita coisa mesmo. Estou fazendo tudo errado? Mas eu vou conseguir! Tenho que conseguir!
Chega, o dia da prova. E diante da prova, dizemos a nós mesmos: “Estudei! Neste eu passo! ” Mas, quando começamos a ler, parece que uma bomba cai em nossas cabeças, e então surgem as perguntas: “Foi para esse concurso que eu estudei? E o que é isso? Meu Deus! Isso existe? ”
E a tortura que é fazer uma prova de concurso? Os editais são bem claros: “Só pode levar identidade e caneta preta transparente”. (Meu Deus! Tem que ser preta e transparente. Não posso esquecer!) “Não pode levar celular, porque se ele tocar, você será desclassificado”. (E uns tocam mesmo desligados. Que coisa! Será que o meu é assim? Nunca testei!). Só podemos levar, na verdade, a identidade e a caneta preta transparente.
Quer dizer que é proibido levar, bolsa, óculos de sol, boné, lápis (pode ter um transmissor interno! Que coisa!), relógio (nem de pulso. São uma ameaça). Quer dizer: “Tudo o que você levar, fizer e disser pode ser usado contra você”. Isso é que é tensão!
E para ir ao banheiro? Não posso falar dentro da sala, só acenar para o fiscal. E se ele não conseguir me ver? E se achar que eu estou movendo os braços porque estou passando alguma pesca? Qualquer um fica louco com tantas dúvidas e preocupações.
Finalmente o fiscal me vê, caminha até mim, manda que eu vire a prova e depois como um guarda-costas, me escolta até a porta do banheiro. Chegando lá, outro fiscal ordena que eu levante os braços. Passa o detector de metal de um lado, de outro. E eu rezando e me perguntando: Será que vai disparar? Será que eu deixei alguma moeda nos meus bolsos? E agora? Se disparar, eu serei desclassificada.
E papel de pastilha? Será que eu tenho algum nos bolsos? Dizem que ele também dispara o detector porque é composto de metal. Que tensão! Que agonia! Será que vou escapar viva desta? Não posso ser desclassificada! Tenho que passar neste concurso! Juro que não fiz nada de errado. Estou cumprindo todo o edital com total fidelidade. Finalmente, nada disparou e eu já consegui voltar para a sala.
Começa a hora do lanche. Como as provas são bastante demoradas, cerca de cinco horas, se faz necessário que levemos lanche para a fome não atrapalhar o raciocínio. Tem gente que leva um verdadeiro piquenique (bolo, refrigerante, frutas, sanduíche, chocolate etc). E a prova? Vai ter tempo para fazer?
Quando a prova é na parte da tarde e começa por volta das treze horas, o sono vem com toda força, e fico pensando em uma xícara de café bem quente para me alertar. Afinal, fazer prova depois do almoço ninguém merece! É um verdadeiro suplício.
Dói o pescoço, a coluna, o sono bate com força, as pernas querem se esticar, se faz necessário se mexer. Tudo é quase uma tortura.
Para fazer uma prova de concurso, é imprescindível que você se prepare também fisicamente, porque com as horas, o corpo entra quase em colapso.
As horas de tormento chegam à reta final. Você entrega a prova, e se retira do recinto, ainda um pouco tonta de tanta agonia. Cabisbaixa, se indagando se os seus sonhos estão indo ladeira abaixo ou se ainda existe alguma esperança para você.
De repente, você escuta dois rapazes conversando. O primeiro diz: - É, cara! Foi moleza! Fechei português, informática, constitucional, administrativo e tudo o mais”.
O outro retruca: - “Foi demais! Parecia coisa de colégio. O básico do básico. Sem preocupação!”
Paro e penso: - “Será que eu fiz a mesma prova que eles fizeram? Estava fácil? Tinha só o básico? Estou é lascada! Eu não estava nem entendendo! E agora? Minha vida acabou?” O jeito é esperar até amanhã para conferir o gabarito. É uma tensão só!
E aquele tipo de prova em que uma errada anula uma certa? Tem coisa mais triste? Tem gente que fica é devendo para o próximo concurso. Isso tudo é uma insensatez do mais alto nível. E, no final, você não passa, ou então você passa tão longe que fica fora da “nota de corte” (ainda inventaram essa).
Então, surgem os velhos colegas, com o seguinte conselho: -“É! Você deveria fazer um cursinho, pois assim, passaria sem problemas”. E eu me pergunto: - “Quando? Que horas? Como pagar? Ainda tenho algum horário disponível? ”
E tem aqueles que dizem: -“Se preocupe não! Você está chegando lá! Está cada vez mais perto”. Perto? Perto do quê? Eu não entendo!
Semana passada eu fiz uma prova e quase fechei português, essa semana eu fiz outra e quase não consigo fazer nada em português. Afinal, eu conheço ou não a língua portuguesa?
E existem aquelas pessoas da família, que não sabem nem como é um concurso e ficam falando: - “Você não passou? Por quê? Fulano passou da primeira vez”. Sim! Você está querendo dizer o quê? Quer dizer que eu sou burro? Incapaz? Não estou entendendo!
E quando vêm com aquelas perguntas: - “Você ainda não passou? ”
O que você acha? Pensa que é de propósito? Que adoro estudar de madrugada? amo fazer concurso todo final de semana? Eu não compreendo!
E a frase que mais incomoda: - “Concurso, a gente não faz para passar, e, sim, até passar”. O que é isso? Um incentivo? É para eu não chorar? Sei não!
E os amigos que tentam nos ajudar: “Mas não vá desistir! Um dia você chega lá!” E eu respondo: -“Não vou desistir. Não tenho essa opção. Ou eu passo ou eu passo. Afinal, preciso ter minha estabilidade”. Os dias vão-se passando. O desespero aumentando. A idade subindo vertiginosamente. E eu, Que Deus me ajude!