Anjo da guarda

Formei-me geólogo pela escola de Geologia da USP em 1975. Um ano benfazejo para os geólogos recém-formados, graças ao milagre brasileiro, financiado pelos empréstimos com juros escorchantes que chegavam ao Brasil vindos do exterior ofertados por aqueles a quem interessava consolidar a ditadura militar que então dominava o país.

Tinha cinco ofertas de emprego: IEA - Instituto de Energia Atômica (que depois virou IPEN – Instituto de Energia Nuclear), Nuclebras, Petrobras, British Petroleum (BP), esta para trabalhar embrenhado na Amazônia, e Metrô de São Paulo. Escolhi o IEA, que era no campus da USP no bairro do Butantã em São Paulo. Não era o que pagava melhor nem o que mais me atraía, mas permitia-me permanecer no território que eu já conhecia dos anos do curso de graduação. E perto da família e da primeira namorada, por quem eu sentia forte atração e que viria a ser minha primeira esposa.

Mas logo me desencantei com o IEA e seu regime militar. Ali teria que passar anos estudando antes de poder dedicar-me a alguma atividade mais aplicada da Geologia. Acabara de graduar-me, estava cansado de estudar, queria experimentar a vida profissional. Analisando as outras alternativas de colocação, acho que como a maioria dos jovens voluntariosos recém-formados, escolhi logo aquela que era o oposto do IEA: a BP, com a promessa de que passaria pelo menos dois anos embrenhado na Amazônia, pesquisando petróleo. Vida dura, mas com altos salários e muito boas perspectivas de ascensão na carreira, inclusive com portas abertas para atuação internacional.

Mas na realidade essa não era a minha primeira escolha. Gostaria muito de trabalhar no IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas, também situado no campus da USP, e onde já trabalhavam vários amigos colegas de graduação. Mas parecia que o IPT não me queria. Desde antes de diplomar-me tentava estágio no instituto. Apesar do apoio dos amigos que já estavam lá nada deu certo.

Acertei com a BP, estive lá numa sexta-feira, deixei carteira profissional e dados pessoais. Começaria na terça da semana seguinte, um início de mês. Na segunda, fui ao IEA tratar de finalizar a rescisão e de despedidas. Estava com o fusquinha de meu pai, ele me emprestara pois não iria usá-lo naquele dia.

À saída do IEA, já ia imaginando a apresentação na BP no dia seguinte. Estava receoso. Ia deixar família, namorada, o conforto e a familiaridade da vida urbana. Mas, fosse o que Deus quisesse.

Então, quando já me encaminhava para os portões de saída do campus da USP, uma força inexplicável empurrou-me para ir ao IPT, que ficava logo ao lado. O racional questionou-me, o que ia fazer lá? Não sei, talvez despedir dos amigos, talvez sondar se ainda existia alguma chance de que me contratassem. Mas enquanto o racional fazia perguntas, aquela força incontrolável empurrava-me, meio que dizendo que não importavam as razões, importava é que eu fosse até lá naquele exato instante.

Fui. Lá chegando, dirigi-me diretamente ao chamado Ipetezinho, antiga moradia do zelador do instituto, que passara a abrigar o Agrupamento de Geologia Geral. Antes de entrar, à porta, fui recebido pelo João Bottura, um dos amigos colega de turma, e o chefe Waldir. Eles estavam alvoroçados, e logo disseram que eu não poderia ter aparecido em melhor hora. Acabavam de saber que o Instituto fechara um vultoso contrato com a companhia de águas do estado, uma grande pesquisa de Geologia estava para ser iniciada no Vale do Paraíba, iriam ter de contratar vários geólogos. E eu era um dos primeiros da lista.

No dia seguinte, não fui à BP como estava combinado. Fui ao IPT, iniciei os trâmites para contratação, quatro dias depois estava contratado. Antes, tive de, envergonhado, ir até o escritório da BP para buscar a carteira de trabalho que deixara lá. O geólogo que me contrataria, com cara de desapontado, entregou-me a carteira com um ar de quem já sabia que eu não ia encarar a provação de enfrentar a Floresta Amazônica.

Hoje, quarenta e três anos depois, avalio que eu não teria resistido à Amazônia. Que bendita força foi aquela que no último instante levou-me ao IPT, onde passei vinte anos de minha vida profissional, e onde aprendi e amadureci como geólogo?

Relembrando aquela força, constato que ela esteve presente em minha vida também em outros momentos cruciais: quando ingressei no curso de Geologia em 1971, quando comprei meu primeiro apartamento em 1978, quando do sorteio do ponto do exame oral na pós-graduação na França em 1984, quando encontrei minha esposa Rilka em 1987, com quem vivo há trinta anos, quando decidimos mudar de vida e de cidade em 1996, vindo morar em Ponta Grossa, e sei lá em que outras situações mais. Passo a acreditar que temos algo como um verdadeiro anjo da guarda, que nos guia nesses instantes.

Bendito anjo da guarda.

Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).