O passeio na Rua Augusta

Esta estória não foi vivenciada por mim, foi-me contada pelo amigo e colega do IPT de São Paulo Marcão Pajé, que foi quem a viveu. Apesar disso, ela é tão marcante que ficou gravada na minha memória, por isso a reconto quase como se tivesse sido vivenciada por mim.

Quando da passagem do Orantes, amigo do Marcão, por São Paulo, eu o conheci, e à sua sedutora namorada. Mas não estive com eles no passeio relatado adiante.

Orantes chegou a São Paulo num sábado, ele e sua namorada num carrão preto coberto de poeira. Vinham de longe, Ponta Porã, nos rincões do Brasil. Ele já de meia idade, os cabelos escassos, semblante endurecido. Ela um mulherão, uma jovem morena de vasta cabeleira negra ondulada, lábios carnudos e curvas estonteantes.

Foram diretamente para a casa do Marcão, o amigo paulista que ele conhecera há anos no sertão nordestino. Nos remotos ermos de Araripina Marcão fazia levantamento de minérios para uma indústria de cimento, Orantes andava por lá a negócios, os quais ele não revelava a ninguém, nem mesmo ao amigo. Naquelas lonjuras os dois travaram forte amizade. As conversas com os moradores locais eram muito boas, mas faltava-lhes algo essencial. Já os dois amigos despertavam e alimentavam lembranças, ilusões e sonhos do sul distante durante a cerveja dos escaldantes fins de dia.

Os amigos reencontravam-se após um longo afastamento. Os abraços apertados e demorados, os causos variados, as risadas muitas, generosos goles da adocicada branquinha nordestina, para rememorar os velhos tempos. Mas já no dia seguinte Orantes e a bela namorada prosseguiriam viagem para seu destino, o porto de Santos. Então Marcão perguntou o que gostariam de ver em sua rápida passagem por São Paulo, ao que o amigo de pronto respondeu:

-- A Rua Augusta! Ouvi dizer que é onde anda rolando a maior badalação nesta cidade...

Sábado à noite, dia e hora ideais para ver o movimento na glamorosa e extravagante Rua Augusta, com os desfiles de máquinas potentes e garbosas, carros envenenados, motos, gente descolada, prostitutas e travestis deslumbrantes. Num instante estavam a caminho das ladeiras que descem dos dois lados da Avenida Paulista, que lá do alto comanda toda aquela efervescente região da imensa metrópole. Foram no carro empoeirado do Orantes, ele fez questão.

Marcão não pôde deixar de notar o terçado ajeitado ao lado da porta do Orantes. Um facão de mais de meio metro de comprimento, de lâmina larga, daqueles usados por mateiros para abrir picadas na floresta.

-- Amigo, pra que esse terçado? Estamos na cidade, não no sertão de Araripina. As coisas andam bravas assim para os lados de Ponta Porã?

-- Não é nada não, só costume. Meu pai andava com ele sempre ao seu lado, eu herdei o hábito. Nunca se sabe quando vai ser útil...

Chegaram à Rua Augusta, o movimento estava febril. Carros, motos, gente, deslocando-se com vagar, tinha-se a impressão que um frisson selvagem abatera-se sobre a cidade e sua gente. Orantes impacientou-se, não estava acostumado a ver-se retido no meio do lento movimento de tantos carros, motos e tanta gente disputando o espaço com os veículos no meio da rua.

Num dado momento, no abre-fecha dos semáforos, casualmente abriu-se um longo trecho de rua desimpedida à frente de Orantes, e ele fez logo avançar, acelerando seu carrão preto para aproveitar aquela fortuita brecha de agilidade. Mas eis que em sentido contrário, na mesma faixa de Orantes, vindo na contramão, um grupo de uma meia dúzia de motos seguia como se eles, os motoqueiros, fossem os donos da rua, habituados que estavam a serem temidos e respeitados pelos caretas motoristas de autos.

Mas Orantes desconhecia tal convenção augustiana. Conhecia o código de trânsito. Ele estava na sua mão, os motoqueiros estavam na contramão. Acelerando como vinha, acelerando continuou. Os motoqueiros demoraram a dar-se conta de que se tratava de situação inesperada, o cara com certeza era um alienado ou desatinado encrenqueiro. Quase houve um acidente. Mas instantes antes das colisões se consumarem os motoqueiros conseguiram, a custo, desviar-se, não sem manobras arriscadas. Alguns deles quase caíram, chegaram a tombar as motos já freadas. Uma imagem patética para aqueles soberbos jovens acostumados à idolatria.

E Orantes continuou, impassível. Marcão ao seu lado apertava os fundos do carro com os pés, apertava os agarradores da porta e do teto com as mãos, a pulsação apertava todo seu peito. Nunca antes aquele agarrador acima da porta pareceu-lhe merecer com tanta justiça o seu nome popular:

-- ... puta que o pariu...

Não demorou e um bando crescido de motoqueiros, mais de vinte, cercou um pouco adiante o carro de Orantes, que se viu obrigado a parar. Gritavam-lhe desafios e desaforos. Ele, parado, calmamente aguardava o que iria acontecer. Nem fez menção de abrir a porta ou descer do carro.

Até que alguns motoqueiros mais ousados, provocando-o com imprecações, abriram a porta do carro do lado de Orantes. Ele então empunhou o terçado que estava bem ao seu alcance junto à porta, desceu calmamente do carro com aquela longa lâmina na mão, o cenho encrespado. Os motoqueiros afastaram-se, formou-se uma pequena roda em torno daquele homem de meia idade junto ao seu carro, com o enorme facão na mão. Os passantes na calçada, os outros veículos, todos pararam, estavam na expectativa do que iria acontecer ali.

Orantes, calmamente, começou a riscar o chão com o longo terçado. Formava-se uma densa cortina de faíscas de fogo ao contato do aço com as pedras do asfalto. Parecia uma performance artística. Marcão apertando ainda mais os fundos e agarradores do carro. A namorada de Orantes atenta ao que se passava, mas serena, nitidamente demonstrando que era uma situação que ela estava habituada a viver. A turba na calçada e na rua aos berros incitava o que parecia ser um confronto iminente. E Orantes, riscando e faiscando o terçado, bradou com voz firme e calma:

-- Quem vai ser o primeiro?

***

Nas manhãs seguintes os jornais e noticiários da cidade não traziam nenhuma novidade sobre a badalação da Rua Augusta. O afamado logradouro tivera uma noite de sábado habitual, sem nenhuma ocorrência de destaque.

Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).