Coincidências
Estávamos, eu e minha filha Laura então com doze anos de idade, retornando de uma ida ao centro da cidade, no final de uma manhã de sábado de janeiro. Nosso destino era a casa de minha mãe onde nos hospedávamos, na Santa Inês, depois do Alto do Mandaqui, na Zona Norte de São Paulo.
Então, quando a meio caminho passávamos pelo Mandaqui, subitamente acometeu-me a lembrança que por ali morava o engenheiro João Iumatti, que eu conhecera quando trabalhara como estagiário na Ferrovia Paulista, vinte e nove anos antes, quando eu ainda era estudante de Geologia.
Eu não consegui lembrar o motivo, mas uma vez estivera na casa do engenheiro. E espantei-me com a força com que me invadiu o impulso de procurar sua casa, tanto tempo depois, para fazer-lhe uma visita surpresa. Será que reconheceria a casa? Será que ele ainda morava por ali? Será que o reconheceria? Será que ele me reconheceria?
Mas o inexplicável impulso era muito mais forte que todas essas dúvidas. Laura não entendeu, creio que nem eu no princípio entendi bem a obstinação com que me entreguei a procurar encontrar a casa. Eu sabia que ela ficava na rua bem ao lado do que antes fora a linha férrea, que vinha do Mercado Municipal e ia para a Serra da Cantareira, depois do Horto Florestal. Lancei-me à busca com um interesse, uma expectativa, surpreendentes.
Até que achamos a casa que, segundo minha nebulosa lembrança, parecia ser a certa. Tocamos a campainha, atendeu uma senhora bem madura, miúda, jovial, desenvolta, que nos confirmou ser a casa certa, que esperássemos um momento, seu esposo estava ao telefone, logo nos atenderia. Aguardamos no portão alguns instantes, enquanto isso lembranças que se diriam perdidas foram me assaltando. João logo nos atendeu, eu o reconheci imediatamente, estava ainda com o mesmo rosto amistoso, depois de tantos anos.
Enquanto ele nos olhava ainda intrigado, perguntei-lhe se lembrava quem eu era, pois há muito tempo não nos víamos. Ele hesitou por um instante, mas logo seu semblante desanuviou-se num sorriso de reconhecimento e de espanto:
-- Você... é o geólogo...
Lembrei-lhe meu nome, nos cumprimentamos e abraçamos, espontaneamente nos revelando que ficáramos ambos bem guardados como boas lembranças um na memória do outro.
Sua esposa, ao presenciar aquele inesperado e feliz reencontro, nos fez entrar e sentar nas poltronas da sala, e enquanto começávamos uma surpreendente e densa conversação, trouxe-nos um muito saboroso suco de abacaxi com hortelã, muitíssimo adequado para aquela inusitada ocasião. Laura, que assistia àquele reencontro ainda sem nada entender, segurou o copo de suco com as duas mãos, como se, agarrando-se à satisfação daquele gostoso refresco, estivesse agarrando-se a algo concreto em meio a tanto desatino.
Fomos então, o engenheiro João e eu, nos relembrando dos bons momentos que passáramos juntos nas obras dos cortes e aterros do ramal da FEPASA para os lados de Itapeva. E eu fui lhe declarando como ele se tornara uma referência em minha vida. Um exemplo de retidão de caráter, de equilíbrio entre a responsabilidade do trabalho bem feito e a descontração da divertida pescaria na hora de folga. Um chefe honesto, exigente e ao mesmo tempo justo, humilde, humano e alegre. Fui lhe dizendo como aprendera com ele que havia pessoas competentes e corretas. Ele me mostrara isso numa época em que eu começara a ter uma efetiva inserção no mundo profissional. E em que na maioria das vezes me deparara, um tanto assustado, com profissionais oportunistas, irresponsáveis, inescrupulosos.
Enquanto falávamos, mais de uma vez fomos interrompidos pela esposa de João, que delicadamente lhe pedia para atender ao telefone no aposento ao lado. Nos breves instantes em que ele se ausentava, ela nos fazia companhia, perguntava sobre mim, sobre minha filha, a família... E eu já estava ficando intrigado com tantos telefonemas que João recebia num sábado pela manhã...
A certa altura da conversa retomada, João contou, com certo desalento, que ele tivera muitos conflitos e dificuldades na ferrovia. Contraditoriamente, justo graças às qualidades que meu relato enaltecera, que tanto haviam me marcado a ponto de guardá-lo na memória e de procurá-lo para aquele reencontro tantos anos depois. Apesar da experiência e da qualificação, ele jamais chegara a alcançar cargos de decisão para os quais estaria naturalmente habilitado. Pois aquelas suas qualidades não tinham sido, nunca, os requisitos para ocupar aqueles cargos.
João revelou-nos uma certa mágoa por ter sido preterido na administração da ferrovia, da qual já tinha se aposentado havia alguns anos. Mas ao mesmo tempo mostrou satisfação por não ter renunciado a seus princípios. E que, fazendo um balanço de sua vida, dava graças por nunca ter fraquejado nas encruzilhadas de escolha entre os caminhos a trilhar. Disse que tinha a consciência tranquila, só lamentava não ter conseguido contagiar seus colegas de trabalho com os princípios que abraçara e que procurara cultivar. Mas que ao mesmo tempo muito se alegrava de saber que marcara tanto aquele jovem estudante estagiário de Geologia, com quem na verdade convivera por pouco tempo.
Então João saiu para atender a mais um telefonema. Foi quando sua esposa, diante da curiosidade estampada em meu rosto, calmamente, docemente, mas visivelmente emocionada, revelou-nos que aquelas constantes saídas do marido eram para atender às chamadas dos amigos, que o saudavam pela passagem do aniversário de setenta anos, que acontecia justo naquele dia. E que eu e minha filha talvez tivéssemos ido levar-lhe, a bem da verdade, o melhor e maior presente, que ele não imaginara poderia vir a receber naquele dia especial.
Depois de mais algum tempo de conversa, que parecia não querer acabar, e de calorosas despedidas, a caminho da casa de minha mãe eu ainda estava aturdido com os acontecimentos daquela ensolarada manhã de sábado. Que estranha coincidência nos conduzira para levar aquele merecido e inesperado reconhecimento de presente de aniversário ao inesquecível engenheiro? E que ao mesmo tempo me ofertara, e à minha filha, um presente talvez ainda maior?
Aliás, este presente ainda maior eu já o tivera há muito tempo. Desde que aquele jovem estudante, assustado e inseguro, conhecera o engenheiro João, e ganhara a lembrança de seu exemplo de profissional e ser humano.
Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).