Casualidades

Era o ano de 1971. Fiz o vestibular para o curso de Geologia na USP e para o curso de Engenharia Geológica em Ouro Preto, na UFOP. Enquanto estava ainda estudando numa república de Ouro Preto às vésperas do exame, uma noite liguei para casa em São Paulo e meu pai parabenizou-me, surpreendendo-me:

-- Parabéns calouro!

Eu demorei a entender. O resultado do vestibular da USP tinha sido divulgado naquele dia, eu tinha sido aprovado. Mas nem me lembrava disso, pois meus pais tinham-me feito entender que queriam que eu fizesse o curso em Ouro Preto. Meu pai tinha um amigo que morava na cidade, o pintor primitivista Hezir Gomes, também policial, e cuja filha era a primeira engenheira geóloga da UFOP. Ele dizia que aquele era o mais antigo e o melhor curso de Geologia do Brasil. Meu pai ficou convencido, principalmente pela palavra Engenharia antes da palavra Geológica. Ele não esperava que seu filho fosse algo menos que um engenheiro. E naquele tempo eu não ousava contrariar meu pai, um militar que confundia sua família e seu lar com a caserna.

Estudei muito, passei também em Ouro Preto, numa boa colocação. Meus pais ficaram muito felizes, eu mais apreensivo que feliz. Não gostara da cidade no tempo que passei lá estudando para o vestibular. Muito álcool, muitas drogas, muita solidão e um clima de angústia e ceticismo que muito me perturbaram. Eu era ainda um menino que nunca vivera longe dos pais e do lar materno, tinha acabado de enamorar-me de uma colega do colégio, gostava de São Paulo e tinha medo de sair da cidade para uma outra, desconhecida e que me parecera hostil. Mas, era a vontade de meus pais. Eu não ousaria contrariá-los. Minha mãe chegou a prometer-me uma moto se eu fosse fazer o curso em Ouro Preto. Ela também queria que seu filho fosse um engenheiro, não entendia como eu poderia querer ser um simples geólogo.

De volta a São Paulo, aguardava a data da matrícula em Ouro Preto e preparava a documentação necessária. Meu pai tinha decidido que eu nem faria a matrícula na USP, seria uma providência desnecessária. Numa manhã logo cedo o telefone toca. Não lembro por qual casualidade, meu pai, que deveria estar no trabalho, estava em casa naquela manhã. Ele atendeu o telefone, teve uma longa conversa, fui percebendo que se tratava da matrícula na USP. Depois soube que ele conversava com Seu Zé, o secretário do Instituto de Geociências da USP. Meu pai desligou o telefone e ordenou-me:

-- Vamos à USP fazer sua matrícula, hoje é o último dia. Depois que você for para Ouro Preto podemos trancar a matrícula, você não perde a vaga na USP, caso aconteça algum imprevisto.

Peguei os documentos que já tinha aprontado para Ouro Preto, lá fomos nós para a USP. Lembro-me que no caminho meu pai ainda discursou sobre as vantagens de fazer o curso em Ouro Preto, o mais antigo e tradicional, o melhor do Brasil segundo seu amigo Hezir.

Chegando à secretaria da escola de Geologia, fui atendido pelo Seu Zé. Ele logo me perguntou:

-- Por que você não vinha fazer a matrícula? Não sabia que hoje é o último dia?

Expliquei-lhe que tinha sido aprovado em Ouro Preto, e que meu pai insistia que eu fizesse o curso lá. O semblante de Seu Zé mostrava espanto com a minha explicação. Casualmente, justamente naquele momento o Professor Evaristo adentrou o bloco, ia passando quando o secretário chamou-o:

-- Professor Tito, por favor...

O professor aproximou-se, Seu Zé, na minha frente, explicou-lhe a situação, que meu pai, que ficara do lado de fora do bloco da escola, queria que eu fizesse o curso em Ouro Preto porque achava que lá era melhor que na USP. O professor demonstrou a mesma surpresa no semblante, virou-se para mim:

-- Cadê seu pai?

Quando lhe disse que ele estava ali fora, o Professor Tito foi buscá-lo, logo entraram os dois no bloco, dirigiram-se à sala do professor, enquanto eu aguardava na secretaria. Não me convidaram a participar da conversa, que durou uns vinte minutos. Logo meu pai saiu, dirigiu-se a mim e ao secretário e disse autoritariamente:

-- Faça sua inscrição, você vai fazer o curso aqui na USP.

Fiquei muito feliz com a novidade, mas não ousei demonstrar isso a meu pai, eu via que de alguma forma ele estava contrariado. Seu filho não seria um engenheiro, seria um simples geólogo. No caminho de volta para casa, criei coragem e perguntei-lhe o que tinham conversado que o fizera mudar de ideia. Ele disse que o Professor Evaristo tinha lhe explicado que embora a UFOP fosse muito mais antiga e tradicional, a USP tinha naqueles dias a melhor escola do país, com os melhores professores, equipamentos, laboratórios, a biblioteca mais completa. Os geólogos formados na USP eram prioridade para contratação pelas instituições e empresas mais importantes que lidavam com Geologia.

Aquela fala de meu pai convenceu-me momentaneamente. Minha felicidade era tamanha que não eram necessárias muitas explicações. Apressei-me em compartilhar a novidade com amigos e com a colega de colégio com quem estava começando a namorar, e que viria a ser minha primeira esposa.

Só muitos anos mais tarde, mais por intuição que por informação, deduzi que meu pai se assustara com o que o Professor Tito lhe falara sobre o que deveria lhe parecer a libertinagem e o risco de ser cooptado por subversivos e usuários de drogas em Ouro Preto. Lá os estudantes moravam todos em repúblicas, longe de suas famílias. Pelo ponto de vista do conservador professor corriam o risco de ser presa fácil dos aliciadores.

O Professor Tito e meu pai tinham convicções ideológicas muito parecidas. Quando descobri isso, já estava lá pelo terceiro ano do curso de Geologia, foi que comecei a compreender o que se passara de fato no dia da matrícula.

Agradeço muito aquelas casualidades, meu pai em casa naquele dia, o telefonema do Seu Zé, o encontro com o Professor Tito bem no momento da matrícula. Graças a isso me qualifiquei para a profissão à qual me dediquei toda a vida até aqui, que tem me garantido uma existência digna e muito gratificante.

Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).