Essas fantásticas criaturas: as baratas

Desde muito cedo convivo com as baratas. Ainda bem menino, morávamos na casa da Santa Inês, na periferia norte de São Paulo. Quintais com muitas plantas e terrenos baldios em volta. A garagem era separada da casa, nela além do velho Ford Deluxe 1940 de meu pai, guardavam-se todos os trastes que não eram mais bem-vindos dentro de casa. Um paraíso para as baratas. Amiúde nos deparávamos com elas, ou eram elas que se deparavam conosco, os humanos. Parecíamos invadir o território delas quando nos encontrávamos, principalmente à noite. Elas nos avaliavam com suas oscilantes antenas, pareciam nos interpelar da razão de estarmos por ali, indesejáveis intrusos.

Eram tantas e tão bem fornidas que vez ou outra meus pais preparavam misturas de venenos com açúcar, colocadas em tampinhas de garrafas de refrigerantes. Era uma mortandade, um baraticídio. O chão da garagem amanhecia com muitas vítimas, algumas ainda agonizando, emborcadas. Apesar do asco que meus pais e minhas irmãs mais velhas demonstravam, não conseguia repudiar aqueles inofensivos bichinhos. Compadecia-me com sua desafortunada sorte.

Então minhas irmãs começaram a ter aulas de laboratório de Biologia no ginásio. Eram outros tempos. Ainda no ensino básico dissecavam-se pequenos animais, calculava-se o raio iônico de átomos, faziam-se análises estatísticas e reações químicas. A professora de Biologia, a Maria Caleffi, uma mulher extraordinária para a época, uma jovem senhora que exalava maturidade e airosidade, independente, firme, um caráter que apequenava muitos dos professores homens, pediu que os alunos levassem para as aulas baratas vivas, elas seriam examinadas debaixo de potentes lupas. Minhas irmãs vieram então pedir-me que caçasse para elas algumas baratas, tarefa que assumi empolgado. Na época não me dei conta que talvez ali estivesse privando minhas irmãs de parte da lição que a professora Caleffi queria ensinar a seus alunos: a caça aos bichinhos era uma forma de desmistificá-los, mostrar que eles são insetos como todos os outros, não precisamos temê-los nem repudiá-los como se fossem praga do apocalipse. Cacei as baratas, entreguei-as às minhas irmãs, não me lembro de termos comentado o que foi feito com elas.

Mais alguns anos, e chegou a minha vez de estudar as baratas no laboratório. A mesma professora Caleffi, sempre entusiasmada, pediu-nos então que as levássemos vivas para a aula. Voltei a caçá-las, continuávamos com aquela fecunda criação na garagem. Levava várias baratas, para mim mesmo e para os colegas, fazia a alegria daquela professora que muito me impressionava. Naquele tempo ainda não tinha noção de que eu a admirava e respeitava muito, ficava feliz com a felicidade dela.

No laboratório, após atordoarmos as baratas com éter, as abríamos, sob a supervisão da professora, debaixo da luz da lupa. Empolgada, a professora ia nos mostrando e comentando o que para ela eram vantagens evolutivas fantásticas daqueles notáveis bichinhos. Tidos como tão repugnantes pelas famílias de quase todos nós, os alunos. Falava de oito corações, e nos mostrava como eles pulsavam na lente da lupa. Falava que eram bichinhos que respiram através da pele, não têm um sistema respiratório como o nosso, mas outro muito mais versátil e eficaz. E falava do exoesqueleto que conferia uma força e uma resistência inigualáveis, e que talvez um dia viéssemos a copiar tal aparato para construir dispositivos para incrementar o desempenho humano. Ali, além de uma notável mulher e investigadora sem preconceitos e traumas, ela estava também mostrando ser visionária, antevendo anseios tecnológicos de um futuro que começamos a vivenciar só agora, em pleno século XXI.

Aquelas inesquecíveis aulas de Biologia e as caçadas na garagem de casa tiveram o mérito de fazer-me ter uma consideração muito especial pelas baratas. Voltei a encontrá-las numa situação singular quando já era um jovem profissional que frequentava a noite paulistana. Aconteceu no então badalado Bar Riviera, no efervescente cruzamento da Avenida Paulista com a Rua da Consolação, o novo centro nervoso da cidade de São Paulo naquele tempo. Éramos um grupo de amigos não habitués do bar, sentamo-nos numa mesa bem centralizada, que curiosamente estava ainda vazia quando chegamos, o bar já estava lotado. Após algum tempo sentados, percebemos que éramos alvo da atenção não só dos garçons, mas também de alguns dos clientes que ocupavam as mesas à nossa volta. Eles pareciam divertir-se às nossas custas, não conseguíamos atinar com a razão. Então senti algo subir pela minha perna, por dentro da calça. Olhei para o chão e vi que ali debaixo daquela mesa havia um ralo, e em volta dele várias baratas pareciam dar início à sua ronda noturna. Uma delas já havia subido pela minha perna. Graças às minhas experiências pregressas com aqueles familiares bichinhos, não me abalei, levantei calmamente a barra da calça e com um toque afastei aquela ousada exploradora. Foi um delírio dos garçons e dos habitués, creio que para eles esse era o maior atrativo da noite no Riviera. Acho que aquelas baratas deveriam ter até nomes dados pelos garçons, e depois que os não habitués como nós saíam, elas eram mimadas e regiamente alimentadas. Eram queridos animaizinhos de estimação, que faziam a felicidade daquele povo.

Noutra ocasião, já era então casado com a Rilka mas ainda sem filhos, fui com meu padrinho Cardoso a uma fazenda às margens do reservatório de Água Vermelha, perto de Iturama, em Minas Gerais, para uma pescaria de tucunarés. Ficamos hospedados na antiga sede de fazenda partilhada por herdeiros. O irmão que ficara com a sede, conhecido de meu padrinho, era sem dúvida o menos zeloso com sua propriedade. A casa estava muito malcuidada, fui alojado num aposento que algum dia tinha sido um quarto de dormir, mas agora era um cômodo de despejo onde se entulhavam arreios, ferramentas da roça, balaios de bambu, selas, móveis e papeis velhos e outros trastes. No meio foi improvisada uma cama de campanha, que seria meu leito.

Na primeira noite ali, fui despertado por uns ruídos inusitados. Parecia algum tipo de combate entre pequenos animais, ouviam-se chiados e farfalhadas. De repente algo caiu do teto sobre o meu peito. Levantei-me sobressaltado, acendi a luz e descobri que se tratava de parte do corpo estraçalhado de uma barata. Olhei para o teto e ainda pude ver uma grande lagartixa deslocando-se às pressas para esconder-se numa fresta. Naquela noite, a última que passei naquela inesquecível fazenda, aprendi que as baratas, apesar de superdotadas, também têm seus inimigos mortais. E passei a ver as lagartixas de forma diferente do que vira até então.

Outro episódio marcante envolvendo baratas, ou melhor, neste caso uma solitária barata, aconteceu quando Laura e Lucas, o casal de filhos, tinha já entre dois e quatro anos. Tínhamos uma bela farinheira torneada em madeira escura, com um pequeno furo na borda da tampa redonda, por onde se encaixava uma colher da mesma madeira com um longo cabo roliço, deixando sobrar um pequeno vão com uns poucos milímetros de abertura. Apreciávamos uma boa farinha de mandioca, tínhamos trazido de Caruaru uma farinha d’água inigualável.

Certa vez ficamos alguns meses sem utilizar a farinheira. Então, já não me lembro qual era o cardápio, creio que uma moqueca de cação, a estimada farinheira foi para a mesa, a farinha d’água ia acompanhar muito bem aquela saborosa e cheirosa refeição. Depois da comida já no prato, quando abri a farinheira, a surpresa. Ela já estava praticamente vazia, em vez da farinha muitos pequenos dejetos negros roliços e uma gorda e grande barata, tão lerda que não se moveu e não nos causou embaraço para retirá-la da mesa para a qual não tinha sido convidada. Depois pusemo-nos a cismar: como aquela barata tão grande tinha ido parar dentro da farinheira, que só tinha uma abertura tão pequena? Deduzimos que ela deveria ter entrado quando ainda era uma pequenina baratinha, que cabia na estreita fresta da abertura por onde passava o cabo da colher. Encontrou o paraíso dentro da farinheira, desde que suas pretensões na vida não fossem além do crescimento e da sobrevivência. Ali ela cresceu, alimentando-se da nossa apreciada farinha. A água, outro prodígio desses animaizinhos, deveria ser a umidade contida na farinha, uma quantidade ínfima, mas suficiente. É bem possível que aquela barata estivesse à espera do momento de lançar-se no mundo, agora que estava bem alimentada e crescida. Frustramos os seus planos. De um nutrido inseto ela passou a pasto de microorganismos.

Quando já estávamos morando na fria Ponta Grossa, os filhos já mais crescidos, outro incidente envolvendo as baratas, este um pouco mais assustador. Meu filho, então com cerca de dez anos, avisou-me que debaixo do carro na garagem da entrada de casa estavam três baratas. Fui ver, na verdade já eram cinco! Não, dez! Então vimos que elas vinham da rua, por baixo do portão de entrada. Fomos espiar, espanto! A rua estava infestada de baratas. Elas tomavam não só o chão da rua e das calçadas, mas também os postes, os troncos das árvores, os muros. Eram de várias espécies, desde as que vemos comumente entre nós, outras sem asas, outras claras, até umas enormes, cascudas, escuras. Uma cena sinistra. Então percebemos que as baratas saíam às centenas, atordoadas e eufóricas, literalmente baratinadas, dos bueiros nas sarjetas ao longo da rua. Perguntando e investigando, descobrimos que pouco antes uma empresa de dedetização estivera pulverizando uma casa do quarteirão que estava desocupada há muito tempo. Ao final da pulverização, um imprudente funcionário resolvera esvaziar o recipiente de inseticida pulverizando dentro de um bueiro. Então o que estávamos vendo era a população dos esgotos do quarteirão banida de seu habitat por aquela irresponsável pulverização. Aquele exército de baratas convivia muito bem conosco, os humanos, abaixo de nossos pés, desde que respeitássemos seu território. Naquele dia desrespeitamos. E fiquei com a impressão que nos fizeram uma pequena demonstração da invasão que poderiam promover caso resolvêssemos confrontá-las.

O mais recente episódio aconteceu estes dias, na mesma casa em Ponta Grossa. Lidando no compartimento do armário onde guardamos os jogos que jogávamos com os filhos quando estes, ainda crianças, jogavam com os pais, Rilka encontrou a antenada alienígena. Rilka não teve, como eu, uma professora de Biologia que lhe mostrasse as maravilhosas entranhas e notáveis atributos desses bichinhos. Nunca foi levada a admirá-los, até apreciá-los. Ela os detesta, tem asco, cada vez que encontra um, grita para que a acudam. Fui lá, borrifei o veneno, retirei uma a uma as caixas de jogos, logo encontrei a jovem e charmosa baratinha, na flor da idade, já nos estertores. Outra vez abreviava um futuro quiçá próspero. Então fomos investigar como estava vivendo aquela promissora adolescente. Minha esposa encontrou então o cilindro de papelão que é o recipiente que guarda as varetas do jogo de pega-varetas. O rótulo encontrava-se todo corroído. Tinha sido a alimentação daquela audaciosa jovenzinha. Acreditamos que não propriamente o papel do rótulo, pois outros papeis talvez mais apetitosos existiam naquele armário, e estavam intocados, mas sim a cola que colava o rótulo ao roliço recipiente.

Que fantásticas criaturas! Vários corações, respiram através de toda a superfície do corpo, têm um invejável exoesqueleto. Podem alimentar-se e crescer com praticamente qualquer coisa que encontrem, seja a farinha de mandioca, seja a cola do papel. Não necessitam de água. Suportam a solidão, a escuridão e a espera dentro de uma farinheira. E podem formar um insuspeito exército oculto sob nossos pés. O que mais teríamos para invejar das baratas?

Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).