Madrigal

“I have a rendezvous with Death

When Spring brings back blue days and fair.”

Alan Seeger

O áudio da série francesa estava alto mas ele não se incodou, sentou na cama, acendeu um cigarro e, pela segunda vez em uma década, abriu uma cerveja sozinho, em casa e às nove da manhã. As coisas já estiveram piores, bem piores, mas nunca tanta coisa muito ruim convergiu em um momento com tão pouco em mãos para negociar o obstáculo.

Um filhote olha e pula em seu colo, oferece a barriga e começa a ronronar. Em tempos como esse, ele busca trazer à memória os combatentes de Stalingrado. Cada dia vivido, uma celebração. A morte lhes sorrindo a cada instante, flertando, convidativa.

O cigarro acaba antes que ele chegue a alguma conclusão, então ele acende outro e faz algo inédito: abre mais uma latinha. Está muito cedo e o estômago muito vazio para evitar que, mesmo baixo, o teor alcoólico cobre sua taxa. A cabeça fica leve e isso o preocupa em algum recesso de sua consciência. Leu em algum lugar que a sensação positiva pode ser a isca para que o alcoolismo se instale. Ainda assim, termina esta e abre mais uma.

Pouco importou à comissão que a criatura fosse burra em suas mentiras, tanto fez que as testemunhas sólidas invalidassem as acusações, elas queriam um boi de piranha e, como a comissão é soberana e conseguiu a bandeira que queria... "Deixe que os caras verdadeiramente culpados escapem impunes, estes a gente não tem nem cacife nem coragem de alcançar; temos um filho da puta para deixar em desgraça, e podermos ir para casa com a sensação de poder, de justiça servida. Se ele se sentir injustiçado, que procure seus direitos fora da instituição."

A Morte sorri, afaga a barba dele e sussurra "Tão fácil", insiste "tão simples". Mais uma lata e no meio dela, se lembra de fazer descer a Metiformina e a Glicazida junto com o líquido cor de âmbar. Âmbar... Uma vez ele viu uma peça... Resina vegetal fossilizada, um fragmento fossilizado de uma dor ancestral convertido em beleza aveludada.

Um novo episódio se inicia, o roteiro já deixou de fazer sentido há algum tempo; só restou a sonoridade da língua francesa, límpida como só ocorre em filme. Uma história de mistério, os atores dizem suas falas em um tom discreto, íntimo.

A pequena massa ronronante em seu colo reclama suavemente qdo ele se levanta e o acompanha até a geladeira, exigindo patê pelos danos morais; outros se juntam miando, correndo frenéticos quando o salame sai de seu invólucro e é fatiado fino. Algumas fatias ficam como tributo antes que ele volte a seu posto em frente à série que foi deixada rodando. A esta altura, quem se importa com estes franceses que receberam seu pagamento ao final de cada mês de filmagem?

Três meses sem pagamento em condições normais já é desastroso mas, nas atuais condições, é impensável. A raiva vem e nubla sua visão, mais uma vez e, mais uma vez ele revê cada momento do circo que a comissão encenou. Docentes sem experiência, cheias de preconceito e com uma ânsia frustrada de pegar os caras que realmente aprontam. Em geral, o docente, em comissão de processo já é tomado de um delírio que mistura a vontade de brincar de CSI e a certeza onipotente de que suas pequenas opiniões senso comum são cláusula pétrea no ordenamento jurídico. Naqueles que já fazem isso há algum tempo, esta senha é mitigada pela realidade, que contradiz suas aspirações justiceiras. Mas o que fazer quando designam marrecos de primeira viagem para decidir a sua carreira, a sua vida?

"Talvez", sugere a Morte,"tomar a ofensiva, recuperar o que lhe tomaram; fazê-los pagar pela leviandade, pela irresponsabilidade, pelo descaso." Não, não é hoje que o encontro com a Morte é definitivo. Quando se entra em acordo com ela, quando se deixa de fugir dela, mas cortejá-la, ela se revela uma boa conselheira. Não, não é hoje seu rendez-vous...

Levanta, faz a tua barba, toma teu banho, veste tuas roupas e vai, tua melhor amiga sempre te sorri, sempre te garante um momento de brilho único antes que as luzes se apagem.