Mínimas decepções

Mínimas decepções

Irineu gostava de música gospel. Participava do culto aos domingos por gratidão ao pastor que o fizera deixar de fumar. Sentia que jamais poderia confessar que estava no culto pelo louvor: os hinos lavavam-lhe o coração doído; eram um bálsamo para sua alma desesperançada.

Quando o louvor era presidido pelo Antenor, Irineu sentia o salão da igreja se encher do Espírito Santo e experimentava momentos de êxtase. Levantava-se, erguia os braços, gesticulava ao ritmo do hino e cantava com todas as suas forças até verter lágrimas. Os hinos se sucediam e Antenor levava os fiéis à catarse; não havia quem se mantivesse imune ao influxo do poder de sua voz de baixo-barítono. Os fiéis bailavam, as colunas do salão giravam, o teto oscilava. Tudo estava repleto das línguas de fogo do Espírito Santo.

Profissional disputado pelas igrejas, Antenor aprendeu como fazer valer seu talento. Passou a louvar nas que lhe pagassem mais, já que era promessa de “casa cheia” e ofertas generosas. Antenor atraia fiéis, de sorte que havia os que o seguiam pelas tantas outras igrejas. Antenor tornara-se mais central do que o pastor: ele próprio fora bafejado pelo Espírito Santo.

Quando não era domingo do Antenor, Irineu tinha a impressão de que o Espírito Santo decidira acompanhá-lo à outra igreja. O louvor, apenas correto, não fazia chama. Irineu deixava o salão como havia chegado, exceto pela decepção pela falta do magnetismo do Antenor.

Irineu entendeu que precisava falar com o pastor sobre ter Antenor lá, todos os domingos. O pastor não pôde conversar imediatamente, mas convidou-o para falarem durante a semana, antes do culto. Irineu preparou-se para argumentar e sugeriria até uma campanha para ter Antenor com exclusividade.

Na noite da conversa, Irineu chegou para ser o primeiro. O salão ainda não estava aberto, mas a porta, encostada. Ouviu uma voz vindo dos fundos que xingava palavras de grosso calibre. Irineu se perguntou se o pastor estaria endemoniado. Eis que, do nada, o pastor se materializa no salão, cigarro na boca, copo de pinga na mão. O encontro surpreendeu os dois e o pastor, espontaneamente, emitiu mais um impropério fálico. O enigma fora decifrado. O pano caíra.

Irineu, atônito, não aceitava que fosse o pastor. Aquela voz sempre amaciada, pasteurizada, adocicada tinha sido áspera, chula, azeda, grotesca. Irineu vaticinou que seria de todo inútil conversar com aquele sujeito que já não mais reconhecia como pastor. Deu-lhe as costas e saiu. O pastor, à paisana, era mais um ser ordinário. Pregava com desenvoltura, mas tinha as mesmas dificuldades que qualquer um para seguir suas próprias pregações. O castelo construído laboriosamente por Irineu mostrou-se de areia e se desfez. E ruiu por completo.

No domingo seguinte, ainda confuso e abalado, Irineu não foi ao culto. Não era escala do Antenor. Assim que soube das datas do Antenor, retornou. Viu e ouviu Antenor, orou e louvou a banhar-se de lágrimas. Durante a pregação do pastor, saiu para fumar.

Desistiu de se aproximar do Antenor. Melhor admirá-lo à distância do que se frustrar com a pequenez humana. Melhor cuidar para que o novo castelo de areia não ruísse também.