A caçada
Janus é o marido da Lúcia, uma grande amiga minha e de minha família. Tínhamos sido vizinhos desde a infância, lá no bairro da Santa Inês. Frequentamos o mesmo colégio, o CEDOM. Nossa amizade era duradoura e sincera, mas nunca passara disso. Mas talvez Janus suspeitasse de alguma coisa mais entre nós.
Certa vez ele me convidou para uma caçada. Eu relutei um pouco, ele insistiu, então lá fomos nós. Saímos da cidade ao cair da noite de uma sexta-feira, logo chegamos a Juquitiba, onde pernoitamos na casa de um velho casal de húngaros parentes do Janus. Eles falavam uma língua estranha, e nos ofereceram um cálice de destilado de uva caseiro, muito forte e saboroso. Apesar do destilado, eu mal consegui dormir naquela casa estranha, com pessoas estranhas, e com a expectativa da imprudente aventura do dia seguinte.
Levantamo-nos antes do clarear do dia, tomamos um café rápido e rumamos para as florestas da Serra do Mar. Seguimos de carro por um curto trecho em uma trilha que ia até a borda da mata, depois prosseguimos a pé. Éramos três, Janus, um mateiro conhecedor daquelas brenhas e eu. Eles tinham espingardas de dois canos de grosso calibre, eu tinha uma de um cano de calibre menor, que não disparava um tiro há muitos anos. Contávamos encontrar catetos, pacas, cutias, jacus ou sabe-se lá que outras caças.
Andamos muito pela mata, ora subindo e descendo ribanceiras, ora caminhando pelo leito pedregoso de arroios de águas muito límpidas, ora atravessando lamaçais. Uma névoa branca que tudo embebia borrava os contornos já esmaecidos na penumbra da mata. Era um dia sem sol, a neblina reinava soberana na serrania.
Caminhamos muito, mal paramos para um ligeiro tira-fome lá pelo meio do dia. Nem sinal de algum bicho que nos fizesse atinar com a razão de estarmos por ali, a meu ver naquele insano sacrifício. Pelo meio da tarde, eu estava esgotado, mal conseguia andar. Janus e o mateiro, mais acostumados e mais fortes, estavam firmes, caminhavam determinados, não queriam passar o vexame de retornar sem uma caça.
Então escutamos um pio no alto de uma árvore. Paramos, fizemos silêncio, ficamos a escutar e espreitar as copas das árvores para os lados de onde viera o pio, a neblina ainda tudo embaçando. Eu nada via, mas, pelas sombras e o farfalhar das folhagens, os dois caçadores começaram a perceber onde estava empoleirado o pássaro, talvez um jacu.
Logo Janus levou a espingarda ao ombro, armou-a, fez mira e disparou. O pássaro debateu-se no meio da folhagem, fez-se um grande rebuliço, ouviu-se o estampido de um segundo disparo, agora do mateiro. Então o pássaro, que penso que graças à neblina escapara ileso às duas chumbadas, alçou voo entre as copas das árvores, lá no alto, e só então pudemos vê-lo com mais clareza.
Eu, que até aquele momento estivera de espantado expectador daquela fuzilaria, num gesto instintivo e rápido levei a espingarda ao ombro, armei, fiz mira... Por um instante tive o pássaro na mira, poderia tê-lo alvejado. Mas não sei por quê, não o fiz. Algo, inexplicável, deteve-me, não apertei o gatilho, deixei o pássaro escapulir alvoroçado. Afinal, ele bem o merecia, já sobrevivera a duas saraivadas.
Quando desarmei e baixei a arma, Janus e o mateiro olhavam-me inconformados, inquiridores, reprovadores:
-- Por que você não atirou?
Não soube responder, dei de ombros. E senti que minha omissão e meu silêncio apartaram-me definitivamente dos dois caçadores.
Andamos ainda mais um pouco, alcançamos um rancho rústico coberto com folhas de palmeira, onde havia chão seco. Os dois caçadores queriam prosseguir até um rincão distante, onde faziam fé encontrariam caça. Decidi esperá-los ali no rancho, onde me recuperaria da fadiga. Eles se foram, fiquei tentando descansar. Mas os pensamentos, alvoroçados como o atônito pássaro, foram repassando o tiro que eu não fora capaz de disparar, foram divagando pela mata agora quieta, sem ruído de animais nem de homens, só o incessante gotejar da neblina condensada na folhagem. Tinha a sensação de que a floresta espreitava-me, ela também me repreendendo, não pelo tiro não dado, mas pelo simples fato de eu estar ali, empunhando uma espingarda, na companhia de caçadores.
Assim, num mudo e penoso diálogo com a mata, esperei o retorno dos dois homens. Eles chegaram quando a noite já começava a cair. Calados, sem nenhuma caça, nada tinham encontrado.
A longa caminhada de retorno foi a penitência pela minha inadvertida afronta aos caçadores e à mata. Na escuridão, eu nada enxergava, avançava aos tropeções, caí incontáveis vezes, batendo-me com pedras, tocos de paus, galhos, raízes... Enquanto eu me enlameava, encharcava, esfolava, sofria de dores, de vergonha, de remorso, de humilhação, os dois homens caminhavam sempre à frente, resolutos. Pareciam enxergar na escuridão, pareciam desfrutar de algum tipo de conluio com a floresta, do qual eu fora excluído. Não caíram uma vez sequer, não deram uma palavra, e nem me ajudaram em minhas quedas.
Creio que assim se vingaram. Quanto a mim, desde então nunca mais estive, e penso que nunca mais estarei, numa caçada.
Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).