Primeiro dia

Naquele tempo, era muito raro que uma criança com menos de seis anos frequentasse a pré-escola. Os meninos de bairros periféricos como eu passavam os dias andando de carrinho de rolimã, jogando pelada no campinho de terra batida, explorando os matagais dos imensos terrenos baldios, pescando guarus e cascudos com peneiras, mergulhados até a cintura nos alagadiços das baixadas...

Mas meus pais, talvez por perceberem em mim um menino mais introvertido e mais dado a passatempos caseiros que os demais da mesma idade, talvez pela minha precoce alfabetização espontânea, decidiram, para meu desespero, fazer-me frequentar a diminuta turma de pré-escola para crianças menores, no mesmo grupo escolar que minhas irmãs mais velhas já frequentavam. Então, contrariado, mortificado, lá fui eu para o primeiro dia de aula.

A escola, o Grupo Escolar Frontino Guimarães, no Alto de Santana, zona norte de São Paulo, tinha um portão principal para os alunos que dava numa ampla passagem a céu aberto, um corredor que ligava a Rua Paulo Gonçalves a um primeiro pátio interno, este também ao ar livre. Vindo da rua, logo adiante do portão estava, ao lado esquerdo, a porta de uma saleta onde uma professora muito jovem e sorridente ia recebendo os pequenos como eu, meninos e meninas, e ia procurando descontrair-nos e ambientar-nos.

Lembro-me que chegamos cedo, meu pai deixou-me com a professora e outros pequenos que já estavam por lá, enquanto os alunos regulares, todos impecavelmente uniformizados com blusas brancas e calças ou saias plissadas azul-marinho, ainda chegavam, aos bandos, ruidosos e espalhafatosos. Eles passavam pelo largo acesso ao ar livre na frente da porta da sala da pré-escola e reuniam-se no grande pátio com chão de terra mais adiante. Lá, aos grupos, conversavam animadamente ou jogavam bolas de gude em quatro buracos pequenos escavados no chão, três alinhados e o quarto desenhando com eles a letra L. Esse grande pátio a céu aberto era ladeado num dos flancos por uma escadaria ao longo de todo seu largo, que dava para um segundo pátio, elevado, sem paredes nas laterais, coberto com telhas de barro sustentadas por um madeirame à vista. Era nesse segundo pátio que, dado o primeiro sinal, uma sonora campainha metálica, os alunos formavam pelotões por classe, as respectivas professoras à frente. E, após o segundo sinal, dali marchavam para as salas de aula, pelotão após pelotão, organizadamente, das turmas mais novas, de primeiro ano, para as mais veteranas, de quarto ano, que iam por último.

Lá estava eu na sala da pré-escola, ainda assustado com tantas novidades e tantas crianças de minha idade ou maiores, completamente descontraídas, quando escutamos o primeiro sinal. A algazarra nos pátios lá fora primeiro aumentou, depois foi acalmando pouco a pouco. Enquanto isso, a dócil professorinha tentava tranquilizar-me, perguntou o que eu gostaria de fazer, eu lhe pedi um quebra-cabeça daqueles de juntar peças que eu conseguira ver em uma estante num dos lados da sala. Ela gentilmente pegou a caixa do jogo, espalhou as peças pelo chão na minha frente, e enquanto se dividia em atenções com as outras crianças, meninos e meninas, alguns muito extrovertidos e peraltas, vez ou outra vinha ajudar-me a encaixar uma peça mais difícil, incentivando-me e apoiando-me com o desafio.

Lá fora já parecia reinar o silêncio. Eu ainda estava muito desambientado e incomodado, então pedi à professorinha para ir ao banheiro. Ela explicou-me que eles ficavam atrás do pátio coberto lá do alto. Eu precisaria sair da sala dos pequenos para o corredor a céu aberto, virar à esquerda, alcançar o grande pátio de terra batida, subir a escadaria, atravessar o pátio coberto e atrás dele veria o banheiro dos meninos.

Saí para o corredor, e parecia-me que todas as crianças que há pouco corriam e gritavam por ali tinham desaparecido. Reinava completo silêncio. Fui andando pelo corredor e antes de alcançar o pátio a céu aberto comecei a escutar um homem falando, com voz muito enérgica. Chegando mais perto entendi que ele falava da importância da disciplina, do uniforme, do horário...

Nesse momento, virando a esquina, vindo do corredor eu alcancei o grande pátio a céu aberto. Ele e a escadaria estavam completamente vazios, e lá do alto, no pátio coberto, contemplavam-me perfilados e mudos todos os alunos e professoras da escola. À frente deles, de costas para mim, o diretor esbravejava, era o homem que fazia o discurso de início de ano.

Pelos olhares e pela inquietação de todos, o diretor percebeu que alguém chegava às suas costas, virou-se e deu comigo lá embaixo no pátio vazio. Apontou-me levantando um dos braços, indicador em riste, com o outro gesticulava acompanhando o acalorado e furioso discurso sobre a importância da pontualidade e do uniforme, duas coisas que eu não estava a cumprir. Aterrorizado e petrificado, eu estanquei no meio do pátio vazio, personificando por alguns instantes o mal que o discurso do diretor procurava debelar.

Creio que pouco antes que as necessidades que tinham me conduzido àquela constrangedora situação me escorressem pelas pernas, surgiu às minhas costas, penso que não menos aterrorizada, a professorinha da pré-escola. À distância ela tinha se dado conta do que estava acontecendo, e correra em meu socorro. Não chegou a proferir uma palavra, estancou como eu, mas sua simples presença fez o diretor compreender o que se passava. Ele interrompeu seu discurso de admoestação, e olhou-me interrogativo. Eu, alvo dos olhares do diretor e de todos os seres vivos da escola, consegui balbuciar:

-- Queria ir ao banheiro...

O diretor, com um sorriso de desconcerto e gracejo, fez-me sinal para eu subir a escadaria. Lá em cima as professoras cuidaram para que meu caminho no meio das turmas perfiladas estivesse devidamente desimpedido. Passei rápido e tranquei-me no banheiro. Esperei, ainda aterrorizado, que o diretor terminasse seu discurso e que até a última turma marchasse para as salas de aula no interior da escola. Só depois saí, atravessei ligeiro os pátios e o corredor vazios, e refugiei-me na sala da pré-escola.

Lá a professorinha, comovida com o acontecido, desdobrou-se em atenções, fez o que pôde para consolar-me, para alegrar-me. Mas o restante daquela tarde estava irremediavelmente perdido, arrastou-se penosamente para mim.

Em casa, à noite, eu teimei com meus pais que não queria voltar à escola. Eles estranharam minha pertinácia, pois de hábito eu não contrariava a autoridade deles. Mas ouviram o relato de minhas duas irmãs mais velhas, que a tudo tinham assistido lá do alto da escadaria, e resolveram adiar a decisão e investigar o acontecido.

No dia seguinte logo cedo meu pai deu um jeito de ir até a escola conferir aquela insólita história. Voltou dizendo que conversara com o diretor e com as professoras, e que eles tinham recomendado que me deixassem viver minha infância de menino de periferia por mais um ano, talvez essa sim fosse uma experiência, um aprendizado, uma escola, insubstituíveis, pois a infância era uma só, e era melhor bem desfrutá-la.

E assim fizeram meus pais, para meu alívio e felicidade. Só voltei para o grupo escolar no ano seguinte, quando eu completaria sete anos. Uniformizado e no horário, perfilei com minha turma de primeiro ano, cantei os hinos e ouvi o mesmo inflamado discurso do mesmo furioso diretor. Enquanto pensava que pobre de algum assustado e incauto pequeno da pré-escola que resolvesse ir ao banheiro justo naquele momento.

Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).