O reencontro
Depois de anos de convivência feliz e frutífera, o estranhamento nos rondava. Às vezes até a desconfiança. Já não desfrutávamos aqueles momentos de mútua revelação, em que ambos nos descobríamos, nos edificávamos e nos comprazíamos. Até que o estranhamento virou distanciamento, e já pouco nos encontrávamos.
Mas sentia que não havia desdém ou indiferença naquele afastamento. Uma sensação de perda nos angustiava. Compartilhei o sofrimento com amigos, eles procuraram consolar-me, disseram que os tempos andavam turvos, inamistosos, e que eles mesmos também andavam às voltas com seus desencontros.
Então tivemos a ideia de provocar uma situação em que nos encontrássemos todos e também ela. Uma tentativa de criar um clima de reconciliação entre nós, entre eu e ela. Planejamos com cuidado data, hora e local. Escolhemos o Ponto Azul, um lugar repleto de memória e de despojamento em Ponta Grossa, de significados e de gente entretida nas suas lidas e diletantismos cotidianos. Quem sabe o calor e a veracidade daquele local desfizessem o estranhamento que vinha nos esfriando.
A aproximação da data foi enchendo-me de expectativa e de apreensão. Quais sentimentos, quais presunções eu levaria para aquele aguardado encontro? Como me reapresentaria a ela? E ela, como estaria em relação a mim? E os amigos, eles também às voltas com suas mazelas?
Antes do encontro o dia foi agitado, mais atribulado que o usual. Era uma sexta-feira, o frisson do final de semana associou-se à apreensão. Mas a esperança daquele possível desagravo combinado para o final do dia acompanhou-me a cada instante.
Enfim, chegou a hora. Chovia uma chuva fina, que não chegava a comprometer o aguardado momento. Ao contrário, parecia ungi-lo. As gotas eram lágrimas de redenção, o chão molhado parecia querer espelhar as alegrias que já tivéramos e que perdêramos sem nos dar conta.
Saudamo-nos os amigos, alegres com aquele momento. Mas ela, embora tivesse dito que ali estaria, tardou a aparecer. Enquanto ela não vinha, conversávamos conversa de amigos, banais e essenciais. Notávamos que o antigo cinema da cidade ali ao lado, o degradado Cine Império, que resgatava momentos inesquecíveis da juventude de alguns de nós, fora demolido. Restava um terreno arrasado, à espera de algo novo. Estaria a alertar-nos das inevitáveis, e às vezes dolorosas, transformações da vida, que encerram perdas mas também descobertas?
Comovidos nos demos conta de quão imprescindíveis foram aqueles instantes de alegria e descontração vividos nas tardes e noites no cinema, num passado não tão longínquo, mas que parecia irrecuperável. Não percebêramos então a essencialidade daqueles momentos, que só o passar dos anos veio nos revelar. Seria outra lição da vida a nos admoestar pela desatenção com nosso outrora feliz relacionamento?
A conversa rolou, o tempo passou. E ela não veio. Por um lado a descontraída conversa nos entretinha, por outro aquela ausência provocava sensação de vazio que se misturava aos nossos inacabados sorrisos.
Tivemos de mudar de local, o fizemos não sem avisá-la, talvez ela ainda nos brindasse com sua aguardada presença. Lá no outro bar, o Rei das Batidas na Balduíno Taques, aquele chuvisco teimoso e suave ainda pareceu querer reafirmar seu intento de despertar-nos e de testar-nos. Depois de ainda umas boas conversas e bem gostosas e nada saudáveis porções de petiscos, despedimo-nos. Incompletos mas felizes, cada um seguiu seu rumo.
Só quando já estava na escuridão do quarto, quase adormecido, foi que ela apareceu. Lembrei-me daquela estória que vi no cinema, das mulheres que parecem gatos, que se afastam furtivas quando as buscamos, e que nos assaltam imprecavidas quando menos as esperamos.
Então ela sussurrou-me ao ouvido palavras de censura e deboche, mas disse que me perdoava. Pois os tempos não estavam mesmo para namoros como o nosso, ela era essencialmente sensível e airosa, e eu andava por demais aborrecido e sisudo. E disse ainda que estivera sim presente ao encontro, espreitara-nos à distância, dissimulada na multidão de gentes, de lembranças e de sensações na qual nós os amigos estivéramos submersos. Disse que avaliava nossas intenções. E considerou-as sinceras. E então, no silêncio e na solidão da escuridão do quarto de dormir, ainda um tanto acanhada, entregou-se a mim.
Apesar daqueles tempos de distanciamento, constatei ser ainda a mesma íntima e querida inspiração.
Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).