Canjica de castanha
Nosso grupo de trabalho já estava embrenhado na mata há duas semanas. Éramos Gustavo e eu, dois jovens graduandos de Geologia vindos da cidade grande, responsáveis pelas equipes que realizavam aqueles trabalhos; Passarinho, um experiente, falador e alegre garimpeiro-mateiro; Ivan, um calado garimpeiro-caçador; e o adolescente cafuzo Raimundo, um mateiro-cozinheiro fascinado pela imagem que fazia de uma cidade, algo que nunca conhecera.
Estávamos acampados a meio dia de caminhada floresta adentro a partir da margem direita do Rio Roosevelt, no extremo noroeste do Mato Grosso, divisa com Rondônia e o Amazonas. Abrigávamo-nos num acampamento erguido com troncos do açaizeiro coberto com as palmas daquela generosa palmeira.
O acampamento tinha dois ranchos. Num estendiam-se as redes com os mosquiteiros, lá ficavam as mochilas com as roupas e pertences e também os mapas e materiais de trabalho. Noutro acendia-se o fogo que era a alma do acampamento, com três toras da madeira verde que os peões chamavam de boa-macaca. Depois do fogo iniciado com a ajuda de palha seca e um pouco de querosene, a madeira não mais se apagava pelos dias, semanas, que se permanecesse naquele acampamento. Bastava ir-se juntando as pontas das três toras à medida que elas fossem sendo consumidas, o que acontecia com bastante vagar. Quando nos mudávamos, era preciso jogar água para apagar o teimoso fogo. As toras eram escolhidas com o diâmetro certo de modo que davam a altura aproximada de um assento. Além do fogo para cozinhar, secar a roupa molhada e afastar os animais indesejados, aquelas toras eram também o assento para as conversas noturnas ou simplesmente para o devaneio dos homens saudosos e cansados, hipnotizados pelo braseiro rubro que nunca esmorecia.
Tanto tempo dentro da mata, a pele já estava amarelada pela falta do sol, que as enormes árvores escondiam. Os olhos acostumados à penumbra, o corpo acostumado ao constante desconforto do cansaço, do suor e das picadas de piuns e carapanãs, o paladar acostumado às refeições muito simples, mas fartas. Antes do nascer do sol era já um generoso prato de arroz, feijão, farinha de macaxeira e carne de caça, a maioria das vezes queixada, abatida por Ivan, o peão caçador. Aquela refeição sustentava os homens ao longo de todo o dia, até o jantar ao anoitecer. A carne era temperada com muita pimenta do reino e o sumo de castanhas-do-pará colhidas durante as caminhadas a trabalho pelas trilhas abertas a terçado através da mata. Havia muitas castanheiras por aquelas bandas, frequentemente encontravam-se os ouriços de castanha pelo chão. Alguns já perfurados pelos agudos dentes de cutias que deixavam os ouriços ocos, mas outros restavam ainda intocados, e eram então aproveitados pelos homens.
Nas manhãs de domingo e às vezes ao final do dia, tinha-se café coado com o pó trazido da sede da fazenda, adoçado com açúcar cristal, acompanhado de castanhas. Gustavo e eu íamos aprendendo que a castanha-do-pará era um componente básico da alimentação naquelas paragens. E lá a castanha era muito diferente daquela que conhecíamos na cidade grande, onde ela era um regalo consumido principalmente nas festas natalinas, junto com figos, damascos, nozes, avelãs e outras frutas e sementes europeias desidratadas. No seio da mata as castanhas não eram secas, mas túrgidas de sumo branco, que os habitantes da floresta chamavam de leite. As castanhas consumidas com o café faziam então as vezes de pão, bolo e leite. Era uma combinação irretocável, um maná em meio à rudeza da selva.
Os trabalhos daquela equipe eram a abertura de picadas medidas, estaqueadas e geograficamente orientadas, e a coleta de concentrados de minerais pesados das areias do leito dos riachos atravessados. Usavam-se as bateias que os peões garimpeiros carregavam às costas para essa finalidade e habilmente manejavam com a água pela cintura dentro dos igarapés. O objetivo era prospectar cassiterita, minério de estanho. Aquelas equipes de trabalho embrenhavam-se na floresta densa em busca de um insumo imprescindível para os modernos confortos da distante civilização.
Trabalhava-se de segunda-feira a sábado. As jornadas eram estafantes, iniciavam-se com o raiar do dia e iam até pouco antes do pôr do sol, quando era imperioso retornar ao acampamento antes que a noite enegrecesse a floresta e libertasse perigos fantasiosos e reais que atormentavam os desabrigados.
Quase todos os dias, lá pelo meio da tarde, desabava um aguaceiro. Não durava mais que um quarto de hora, mas era torrencial. Era um momento singular nas já sempre inusitadas jornadas de trabalho. Aos primeiros pingos os peões rapidamente improvisavam uma cobertura amarrando sobre varas cortadas na hora a lona preta que era trazida para essa finalidade. Apertados debaixo da lona, quase não falávamos. Num ensimesmamento litúrgico, os homens viam e escutavam a água gotejando encharcando a floresta. Por um instante parecíamos dar-nos conta de que tudo era feito da mesma água, revelava-se a comunhão entre o humano e a natureza. Os peões sacavam as bolsas plásticas onde carregavam fumo de corda, palha de milho seca e fósforos, e preparavam palheiros que acendiam e tragavam absortos. Gustavo e eu éramos contagiados por aquela mudez ritual, hipnotizados por aquele rumoroso gotejar. Passada a chuva, a lona era recolhida e continuávamos o trabalho. As roupas ainda ficariam molhadas com o gotejamento das folhas, mas nada que o braseiro da boa-macaca do acampamento não conseguisse secar durante o sono da noite.
Os domingos eram reservados para descanso, manutenção de equipamentos, organização de materiais e amostras, lavagem de roupas, conversas de causos, torneios de tiro ao alvo, pescaria de piranhas nos igarapés, exploração diletante de estranhezas da mata pelos dois jovens estagiários vindos da cidade grande. Mas respeitavam-se os domingos. Não eram dias de trabalho. Assim tínhamos aprendido com os peões, homens incultos, supersticiosos e tenazes.
Num sábado, Raimundo, o peão-cozinheiro, bem cedo se deslocou até a barranca do Rio Roosevelt, para buscar provisões que tinham sido trazidas da sede da fazenda e deixadas na palafita do casal de beiradeiros, Pernambuco e Dona Maria. Era um casal muito amável com dois filhos, Donato, com doze anos, e Nestor, com sete. Eram posseiros por ali já há dez anos, vieram retirantes da seca do Nordeste quando Donato era ainda bem pequeno. Uma tímida clareira na selva aberta a golpes de machado para plantio de milho, macaxeira, jerimum e algum outro legume, a palafita erguida sobre a barranca do rio com troncos e palmas do açaí, perambulagens pela mata para coleta de látex e castanha para trocas escorchantes por roupas, utensílios, medicamentos, cartuchos e outras provisões no entreposto da fazenda, caçadas e pescarias ocasionais, e iam sobrevivendo. Pelo menos até quando fossem expulsos pelos ferozes jagunços, rudes homens armados para quem matar e morrer eram acasos do cotidiano. Eles eram enviados a mando de poderosos grileiros que escorraçavam os posseiros, estes às vezes há décadas desbravando aquelas inóspitas beiradas do Roosevelt. E então os grileiros ilegalmente declaravam-se proprietários das terras, forjando documentos falsos. As notícias de expulsão vinham pelo rádio de ondas curtas, os posseiros mal tinham tempo de juntar seus trastes antes da truculenta e ameaçadora abordagem dos jagunços, que chegavam pelo rio, bandos armados com revólveres e cartucheiras, em velozes e possantes barcos a motor.
Naquele sábado Raimundo voltou da extenuante caminhada de ida e volta do acampamento à beira do rio com uma novidade:
-- Pernambuco e Dona Maria nos convidaram pra ir à casa deles amanhã, pra almoçarmos uma canjica de castanha que ela vai preparar.
Os peões alvoroçaram-se com o convite. Gustavo e eu estranhamos, mas não ousamos contrariar aquela inesperada alegria. Domingo era dia de descanso, a caminhada de ida e volta à beira do Roosevelt seria fatigante. E canjica era para nós da cidade uma sobremesa feita com o grão do milho descascado. Seria esse o almoço? Mas diante do entusiasmo dos peões e da possibilidade de um domingo diferente, concordamos em fazer a longa caminhada no dia seguinte. Acordamos ainda mais cedo que nos dias de trabalho, e, sem o peso das mochilas e jamanxins às costas, tratamos de percorrer sem demora a distância entre o acampamento e a palafita do casal de beiradeiros.
Chegando às margens do rio e à clareira da palafita, ofuscamo-nos com a luz do sol sem a barreira do dossel das árvores, assustamo-nos ao constatar o amarelo da pele desbotada por dias e dias de penumbra. Dona Maria já lidava com a canjica. Os peões logo travaram animada conversa com Pernambuco e os meninos. Falavam dos peixes do rio, dos bandos de queixadas, sinais da onça pintada, os bugres bravios na outra margem do Roosevelt, as chuvas diárias que estavam a aumentar com a chegada do inverno amazônico, as águas subindo e inundando os igapós. Gustavo e eu ouvíamos aquelas conversas descobrindo um mundo novo, e descobrindo-nos ignorantes naquele mundo. Curiosos, fomos ver como Dona Maria estava a lidar com a comida que seria o almoço tão festejado e aguardado pelos peões. Ela estava acocorada a ralar espigas de milho verde com um ralador singular utilizado na floresta, que era uma língua de pirarucu cuidadosamente seca e enrijecida. Colhia o sumo numa grande bacia, para depois coá-lo através de um pano para filtrar só o caldo. Em seguida, ela iniciou um trabalho ainda mais meticuloso: ralar com a mesma língua de pirarucu as pequenas sementes de túmidas castanhas-do-pará previamente descascadas. O sumo delas extraído seria igualmente coado, para separar o leite que era então utilizado na canjica.
Então aprendemos que canjica era para o povo da mata o que nós no Sul chamávamos de curau. Uma iguaria cremosa, que lá na cidade era doce, feita com milho e leite de vaca açucarados. Mas na mata o sumo da castanha substituía o leite animal. Uma trabalheira para ralar e extrair o sumo do milho verde e da castanha, trabalheira que Dona Maria realizava com um sorriso aberto no rosto, via-se a alegria daquela mulher humilde e bondosa por estar surpreendendo os dois jovens forasteiros e contentando os peões embrenhados cansados de consumir carne de caça.
A papa de sumo de milho e castanha foi então salgada, adoçada, e levada ao fogo. Virou um creme amarelo denso, muito fino e cheiroso, o balanço exato entre o doce e o salgado, um sabor inigualável. O almoço foi de pratos e pratos daquele exótico manjar, que se completava, dispensava qualquer outro acompanhamento, que talvez o desmerecesse. Foi um regalo para todos, não houve quem não repetisse uma, duas, três vezes. Não houve quem não elogiasse Dona Maria, que sorria de sincera satisfação.
Depois do almoço, uma bebida feita com o suco de cajuzinho da floresta macerado. O pequeno fruto vermelho de uma grande árvore que crescia à beira do rio. Quando os frutos caíam na água, eram logo abocanhados pelos vorazes pacus, que muito os apreciavam. E por esse motivo os cajuzinhos eram muito utilizados como isca nas pescarias de pacu. Depois do suco, um café ralo mas sublimemente condizente com aquele momento. Coado com o pó trazido do entreposto da fazenda, adoçado com o açúcar cristal por lá mesmo trocado pelo fruto de muito trabalho, castanhas, bolas de látex ou a pele de algum animal.
A seu modo, Pernambuco e Dona Maria tinham preparado para nós, jovens forasteiros, e os peões, um banquete. O que de melhor e mais autêntico poderiam oferecer-nos naquele remoto ermo.
Na volta para o acampamento, Gustavo, eu e mesmo os peões já mais acostumados, apesar de extenuados pela longa caminhada dominical, agradecíamos aquele domingo tão especial, em que Pernambuco e Dona Maria tinham-nos contemplado com a inesperada e inesquecível canjica de castanha. E, sobretudo, tinham-nos agraciado com uma singular demonstração de humana acolhida naqueles rústicos confins.
Publicado no livro "Canjica de castanha" (2019).