Entre o celular e a argamassa
O trânsito parou o meu carro bem ao lado de uma parede pela metade. Na calçada, um caixote de argamassa, duas colheres de pedreiro, um prumo; e, um sentado no chão e o outro de cócoras, dois pedreiros, cada um olhando, digitando o celular na mão esquerda. Não era uma espiada, mas uma conversa longa que parecia ser bate-papo de WhatsApp, com vídeo, foto e tudo. Nada sobre a parede que construíam, que paravam de construir, e que construíam e paravam. Um parecia ser reciprocamente chefe do outro, que simultaneamente se autorizavam, de dez em dez tijolos, uma espiada no WhatsApp, como “pausas” para o descanso, ao cansaço que não havia. E nenhum mestre de obra para encorajá-los: “Vamos, gente, temos de acabar a parede”. Os carros avançaram, contudo pouco eles perceberam que estavam sendo olhados, naquela atual “normalidade” de trabalho.
Então, lembrei-me de O Operário em Construção, de Vinicius de Moraes, quando declamava aos meus dezenove anos. Poesia longa, sobre a árdua jornada daqueles pedreiros que não tinham outro tempo, senão o de trabalhar, “como se fossem máquinas”. Talvez desconhecessem que “eles desconheciam esse fato extraordinário: Que o operário faz a coisa e a coisa faz o operário” ... O celular, com certeza e naquele momento, repetia-se dessa maneira noutras construções e em muitos restaurantes, igrejas, ônibus, metrôs, e até em cinemas. No próprio tráfego, enquanto o carro para ou mesmo quando ele anda, porque também já existe whatsapp em viva voz, não precisa o motorista escrever, dita e a comunicação está feita, pouco tirando a visão do carro da frente que freou; mas, vez ou outra, uma batida. Aí vem a briga: - “Você estava no celular”. Ao que se responde: - “Eu? Estava desligando e dizendo que não podia atender”. E assim “la nave va”, em direção ao naufrágio...
Nessa mídia, o pior de tudo são os assuntos: frivolidades, fuxicos e perniciosas mentiras que receberam o nome estrangeiro de “fake news”, úteis até para golpe de estado, campanhas políticas, fins de namoro, se é que ainda existe o namoro; e a rompimentos conjugais, com separações facilitadas por aplicativos. Os assuntos para aquilo só estão faltando um grau... E desgastam-se na circulação da mesmice, o que é comparável à nutrição dos que comem apenas o que conseguem no mangue. Josué de Castro, o famoso autor do “O Livro Negro da Fome”, fala-nos dessa “endogenia”: come-se somente caranguejo; depois de digerido, devolve-se esse bicho ao mangue em forma de fezes que são comidas pelos caranguejos; e a seguir, tais caranguejos, assim alimentados, voltam a ser comidos, fazendo perfeito círculo vicioso: caranguejo, nutrição, fezes e essas, novamente, mais uma vez na caranguejada à água e sal. Acontece o retorno: o digerido volta a ser comido...
Tal costume, isto é, de se ficar pregado no celular, já é patológico e existem consultórios para tratarem dessa patologia. Nesses ambientes, proíbe-se o uso de celular, o que é ostensivamente desobedecido pelos clientes... Há escolas que também proíbem o uso do celular na hora da aula, quando persistentes professores explicam o que ensinam, parando apenas para o celular... Mas, alguns pais, por pressão dos filhos, protestam: “Isso é uma falta de liberdade!” E muitos casos são levados à Justiça. Quem pensa e reflete constata que estamos num titanic velozmente correndo para se chocar contra um grande iceberg, em profundo oceano. Dizem até que se teria previsto tal tragicidade, o contrário do proverbial Chacrinha: quem não se comunica se trumbica. O celular vem invertendo, tornando muita gente “trumbicada”. Enfim, o genial físico e filósofo Albert Einstein nos admoestou que esses aparelhinhos, sendo um dos inseparáveis dedos da mão, caracterizam-nos com anatomia de tolo, apaixonados por tal idiotice ou indivíduos da futura humanidade sem pensar, sem se comunicar, sem interagir, sem evolução do pensamento: "Eu temo o dia em que a tecnologia vai ultrapassar a interatividade humana, o mundo terá uma geração de idiotas".