Crônicas de Pai para Filho - Serviço Público
Meu pai tinha apenas uma mágoa em sua vida: tanto meu irmão quanto eu, não seguimos a carreira militar como ele fez.
Eu havia sido convidado a me retirar de todas as instituições militares do país, por divergências intelectuais, por assim dizer. Já meu irmão, foi dispensado após uma série de "desencontros de disciplina".
Quando passei a trabalhar, incentivado ( e obrigado ), pela mais linda das esposas ( que evidentemente não me sustentaria indefinidamente ), descobri ter um fantástico e raríssimo dom: o de fracassar em quase tudo. Só não fracassava naquilo que não tentava.
Claro, preciso fazer justiça a minha pessoa aqui. Não fracassava por incapacidade intelectual, ou alguma característica de caráter desfavorável. Geralmente fracassava por discordâncias pequenas em relação ao que tinha ou não de fazer, em determinadas funções.
Inadvertidamente me disseram que eu "não acatava ordens", o que constituía uma grande injustiça, pois eu as acatava, apenas não as cumpria.
Um dia meu pai chegou de madrugada em minha casa, e obrigou minha esposa me acordar. Corri para o chuveiro para um banho rápido, e entrei no seu carro ainda me vestindo. Ele me passou o chimarrão ( que tomava no carro, deixando de lado todas as normas de trânsito e etiqueta ), enquanto me explicava o motivo de tamanha pressa em me sequestrar.
- Você fará uma prova.
- Prova? Do quê?
- Prova de um concurso público.
- Mas eu não me inscrevi em nenhum concurso!
- Eu inscrevi você há algum tempo. Não lhe contei para que você não ficasse nervoso com a pressão.
- Deveria ter me avisado, pois eu tinha de estudar para isso, não acha?
- Você se apega demais a detalhes.
E foi assim, que ele me empurrou pelo portão do local da prova, e me entregou caneta, lápis e borracha. As barras de cereal, ele comeu.
Fiz a prova cercado por um grupo nervoso de pessoas. Homens e mulheres velhos sentados em uma cadeira projetada para crianças de 14 anos, que não sofressem dos males da obesidade diante de mesas que ficavam levantadas do chão pelas nossas pernas.
Notava-se que a atmosfera de desespero impregnava o ar do local. Todos ali já haviam fracassado em suas vidas tantas vezes quanto eu, alguns até mais. E aquele concurso era a última chance de ter um emprego seguro, onde você não precisava ter quase nenhuma qualidade.
O problema era o número de vagas. Não dava para empregar todos os fracassados do país, apenas aqueles que conseguissem não falhar naquela prova. E posso aqui, afirmar que a minha longa experiência como fracassado, tirou-me todo o peso das costas e fiz uma prova tranquila.
No final, o resultado surpreendente: havia passado em segundo. O primeiro colocado havia sido um japonês, que inevitavelmente sempre são os primeiros em quase tudo.
Quando da chegada da carta de aprovação e o pedido nada educado para que eu levasse uma pilha enorme de documentos para o governo, meu pai estava realmente feliz. Ele era de uma época em que o funcionalismo público era algo criado para intelectuais. Hoje é quase o mesmo, porém, sem a grife do passado. E com intelecto bem reduzido.
Desde então, tenho me apresentado pontualmente na repartição em que fui colocado, para desempenhar funções complicadas e burocráticas.
Finalmente encontrei uma forma de ajudar o meu país, e ainda sou pago para isso.
Essa é a beleza do serviço público.