A sabedoria de mamãe
A SABEDORIA DE MAMÃE
Miguel Carqueija
Certa vez, há muitos anos atrás, estávamos minha mãe (Georgeta) e eu assistindo na televisão um velho filme de Hollywood, “As chuvas de Ranchipur”. Foi estrelado por Lana Turner como a milionária caçadora de homens, Lady Edwina Esketh; Michael Rennie como seu infeliz marido, Lorde Albert Esketh; Fred Mac Murray como o alcoólatra Thomas Ransome; e Richard Burton como o médico paquistanês Rama Safti (sim, Burton fazendo papel de paquistanês e se saiu muito bem).
Trata-se do clássico triângulo amoroso. Edwina, ricaça leviana e lasciva, tem um casamento de conveniência. Precisava de um título de nobreza e por isso casou com Albert, aristocrata pobretão, que em troca de ser sustentado e ganhar os cavalos de raça que ela lhe compra (se bem me lembro ele se ocupava em corridas), tinha de acompanhá-la onde ela quisesse ir pelo mundo e ainda aguentar ser traído quase ostensivamente de maneira sistemática. Porém ao chegarem em Ranchipur, longínqua cidade paquistanesa, ainda no tempo da dominação inglesa, as coisas começam a mudar de figura. Edwina seduz o jovem médico Rama, porém, desta vez ela também se apaixona perdidamente e resolve abandonar o marido e viver com o novo amante. A Marani, que governa a região e é mãe do jovem médico, resolve expulsar a pérfida estrangeira. Lorde Albert também começa a se revoltar contra as humilhações sofridas com aquele tipo de esposa. Rama Safti, porém, está disposto a meter os pés pelas mãos e abandonar mãe e pátria, para acompanhar a sirigaita. Para piorar a situação o lorde participa de uma caçada a um tigre devorador de homens e acaba sendo gravemente ferido, sendo hospitalizado e assistindo impotente o desenrolar do caso. O médico, já inteiramente dominado pela milionária que, a seu modo, também é uma devoradora de homens, vai ao hospital e insulta o ferido, numa cena lamentável.
É então que Deus intervém para por as coisas em seu devido lugar. A estação das chuvas começara, mas desta vez elas vieram violentíssimas e acompanhadas por um terremoto. A represa se rompe, fendas se abrem pelo chão, engolindo pessoas. A trucagem, para a época, foi uma perfeição.
O Doutor Rama estava no hotel onde se hospedara Edwina, pronto para ir no próximo trem com ela, disposto a desobedecer à mãe. Mas quando percebeu a inundação e tremor de terra o doutor sai precipitadamente do hotel, deixando Edwina, histérica, aos cuidados de seu amigo Thomas.
Foi nesse ponto que minha mãe fez um de seus sagazes comentários:
“Mas o que é que esse homem vai fazer lá fora?”
Não esqueçamos que havia uma grande catástrofe em andamento: tempestade com inundação e terremoto. Eu tentei explicar:
“Ele é médico.”
“E daí?”
“Ele tem que socorrer as pessoas.”
“Ah, me deixa. Então ele tinha que ser Deus, para mandar parar tudo. O que é que ele pode fazer no meio de um horror desses?”
E sabem de uma coisa? Mamãe tinha razão. Tanto é que o filme habilmente passa por cima do que acontece em seguida. O doutorzinho saíra correndo do hotel sem equipe, sem carro, sem equipamento, pode ser que levasse um estetoscópio na roupa...
A cena muda bruscamente para a estiagem, com dezenas de pessoas feridas e/ou doentes estendidas pelo chão, sendo cuidadas pelo médico e alguns auxiliares. Nesse ponto Edwina aparece para buscá-lo, pois tem de deixar a cidade no próximo trem. Ele se recusa a acompanhá-la, travando-se este diálogo:
“Mas você não me ama?”
“Sim, querida, eu a amo. Mas procure compreender, também os amo” — e assim dizendo mostrou os flagelados estendidos no chão.
Ela compreendeu que o havia perdido e foi embora, ainda procurou a marani para trocar com ela palavras ásperas, como se a velha é que houvesse desencadeado as chuvas e os tremores de terra. O médico, porém agira decentemente, pois o senso do dever falou mais alto que a paixão.
Edwina chega ao trem pouco antes da partida e o marido, vendo-a chegar, sorri e abre-lhe os braços. Apesar de tudo ele a amava, era um homem bom e generoso como poucos.
O filme é excelente mas fica este detalhe que não passou despercebido à esperteza de minha mãe: afinal como fez o Dr. Rama Safti para salvar todas aquelas pessoas em meio ao cataclismo, se ele não tinha estrutura e nem era o Superman?
Rio de Janeiro, 31 de maio de 2019.
A SABEDORIA DE MAMÃE
Miguel Carqueija
Certa vez, há muitos anos atrás, estávamos minha mãe (Georgeta) e eu assistindo na televisão um velho filme de Hollywood, “As chuvas de Ranchipur”. Foi estrelado por Lana Turner como a milionária caçadora de homens, Lady Edwina Esketh; Michael Rennie como seu infeliz marido, Lorde Albert Esketh; Fred Mac Murray como o alcoólatra Thomas Ransome; e Richard Burton como o médico paquistanês Rama Safti (sim, Burton fazendo papel de paquistanês e se saiu muito bem).
Trata-se do clássico triângulo amoroso. Edwina, ricaça leviana e lasciva, tem um casamento de conveniência. Precisava de um título de nobreza e por isso casou com Albert, aristocrata pobretão, que em troca de ser sustentado e ganhar os cavalos de raça que ela lhe compra (se bem me lembro ele se ocupava em corridas), tinha de acompanhá-la onde ela quisesse ir pelo mundo e ainda aguentar ser traído quase ostensivamente de maneira sistemática. Porém ao chegarem em Ranchipur, longínqua cidade paquistanesa, ainda no tempo da dominação inglesa, as coisas começam a mudar de figura. Edwina seduz o jovem médico Rama, porém, desta vez ela também se apaixona perdidamente e resolve abandonar o marido e viver com o novo amante. A Marani, que governa a região e é mãe do jovem médico, resolve expulsar a pérfida estrangeira. Lorde Albert também começa a se revoltar contra as humilhações sofridas com aquele tipo de esposa. Rama Safti, porém, está disposto a meter os pés pelas mãos e abandonar mãe e pátria, para acompanhar a sirigaita. Para piorar a situação o lorde participa de uma caçada a um tigre devorador de homens e acaba sendo gravemente ferido, sendo hospitalizado e assistindo impotente o desenrolar do caso. O médico, já inteiramente dominado pela milionária que, a seu modo, também é uma devoradora de homens, vai ao hospital e insulta o ferido, numa cena lamentável.
É então que Deus intervém para por as coisas em seu devido lugar. A estação das chuvas começara, mas desta vez elas vieram violentíssimas e acompanhadas por um terremoto. A represa se rompe, fendas se abrem pelo chão, engolindo pessoas. A trucagem, para a época, foi uma perfeição.
O Doutor Rama estava no hotel onde se hospedara Edwina, pronto para ir no próximo trem com ela, disposto a desobedecer à mãe. Mas quando percebeu a inundação e tremor de terra o doutor sai precipitadamente do hotel, deixando Edwina, histérica, aos cuidados de seu amigo Thomas.
Foi nesse ponto que minha mãe fez um de seus sagazes comentários:
“Mas o que é que esse homem vai fazer lá fora?”
Não esqueçamos que havia uma grande catástrofe em andamento: tempestade com inundação e terremoto. Eu tentei explicar:
“Ele é médico.”
“E daí?”
“Ele tem que socorrer as pessoas.”
“Ah, me deixa. Então ele tinha que ser Deus, para mandar parar tudo. O que é que ele pode fazer no meio de um horror desses?”
E sabem de uma coisa? Mamãe tinha razão. Tanto é que o filme habilmente passa por cima do que acontece em seguida. O doutorzinho saíra correndo do hotel sem equipe, sem carro, sem equipamento, pode ser que levasse um estetoscópio na roupa...
A cena muda bruscamente para a estiagem, com dezenas de pessoas feridas e/ou doentes estendidas pelo chão, sendo cuidadas pelo médico e alguns auxiliares. Nesse ponto Edwina aparece para buscá-lo, pois tem de deixar a cidade no próximo trem. Ele se recusa a acompanhá-la, travando-se este diálogo:
“Mas você não me ama?”
“Sim, querida, eu a amo. Mas procure compreender, também os amo” — e assim dizendo mostrou os flagelados estendidos no chão.
Ela compreendeu que o havia perdido e foi embora, ainda procurou a marani para trocar com ela palavras ásperas, como se a velha é que houvesse desencadeado as chuvas e os tremores de terra. O médico, porém agira decentemente, pois o senso do dever falou mais alto que a paixão.
Edwina chega ao trem pouco antes da partida e o marido, vendo-a chegar, sorri e abre-lhe os braços. Apesar de tudo ele a amava, era um homem bom e generoso como poucos.
O filme é excelente mas fica este detalhe que não passou despercebido à esperteza de minha mãe: afinal como fez o Dr. Rama Safti para salvar todas aquelas pessoas em meio ao cataclismo, se ele não tinha estrutura e nem era o Superman?
Rio de Janeiro, 31 de maio de 2019.