O casamento
A paleta impressionista de cores do sol que preguiçosamente abandona o posto parece encomendada especialmente para a ocasião. Um final de tarde que filtro nenhum do Instagram seria capaz de superar.
Amontoados no gramado, centenas de convidados. A metade masculina enfiada nos mesmos ternos pretos de sempre e a metade feminina em vestidos longos onde predominavam as variantes de verde e do bege calcinha, o que suponho tenha sido um pedido da noiva, a julgar pela homogeneidade cromática das convidadas.
A noiva chegou num Fusca estiloso e todos os convidados eram moderninhos com suas barbas mal cortadas de fazer inveja aos libaneses do Hezbollah e seus bíceps cunhados à base de rosca invertida e gigantescos potes de whey.
As meninas, com pele à mostra, esbanjavam estrelas, fadinhas, serpentes e grafismos tribais tatuados nas costas, braços, nucas e panturrilhas.
Tudo de mais moderno para celebrar a mais tradicional das cerimônias, o casamento.
- Promete amá-la e respeita-la, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte os separe?
- Sim.
- Promete ser fiel durante todos os dias da sua vida?
- Sim.
Segundo as estatísticas do IBGE, a todo ano, para cada 100 casamentos há pelo menos 35 divórcios, e a duração média das uniões caiu de 17 para 14 anos, o que não impede que as pessoas continuem casando e jurando amor eterno, casando e descasando catorze anos depois.
Bastou a banda tocar os primeiros acordes da música proto sentimental que conduziu os noivos na passarela de madeira de demolição coalhada de pétalas para todas as madrinhas de casamento borrarem a maquiagem da MAC com lágrimas de jorro incontrolável. Os homens permaneceram imóveis feito bonecos de cera, porque homem, mesmo o tipo moderninho, não chora.
Fico pensando se tanto choro antecedendo a oficialização do enlace não seria alguma forma de premonição feminina para algum insucesso da união, o que olhando à luz das estatísticas de divórcios do IBGE, não seria de todo insensato.
Enquanto o neo padre convoca para o pai nosso, crianças correm, chutam garrafas de água mineral como se fossem bolas oficiais da Copa do Qatar e gritam enlouquecidamente pelo gramado, enquanto um bebê no colo da mãe persegue com os olhos o voo errático de um inseto, alheio aos rituais que marcam as uniões humanas.
A bebida era farta e o avançar das horas tornava as pessoas mais expansivas.
Agora falam alto e fazem gestos cada vez mais exagerados.
O tiozão já meio barrigudo e calvo fita desavergonhadamente o design curvilíneo da irmã da noiva, esquecendo-se dos votos de respeito e fidelidade que um dia fez à sua esposa, que se empanturrava de todos os tipos de salgadinhos engordurados, esquecendo-se dos votos de não ceder aos pecados da gula que fez dois dias antes à nutricionista. Pelo menos, a julgar pelo estado da funilaria de ambos, já devem estar juntos a mais de catorze anos. Catando cavaco, estavam vencendo as estatísticas.
Logo chega o momento mais tenso do casamento, quando capangas, digo amigos, do noivo, organizam um bandejaço para vender filetes de gravata a preços descomunais. A revolta toma meu peito e penso que um enfarte iminente me espera. Cinquenta reais por um centímetro quadrado de gravata? De que material seria feita a famigerada gravata pra valer tanto assim? Do Santo Sudário? Pra piorar, levam a equipe de filmagem a tiracolo para que seu ato de miguelagem fique eternizado para todo o sempre. Corro ao banheiro, mesmo sem vontade, e me trancafio por quase meia hora.
Enquanto isso, tento estimar o quanto os noivos gastaram com tamanha festança. Chego à conclusão que comprariam um apartamento popular na perifa de São Paulo, o que de nada importa, porque não imagino os noivos morando em Itaquera, exceto na eventualidade de ser o único lugar com abrigo anti aéreo durante a terceira guerra mundial.
E mesmo tendo gasto uma fortuna que seria evaporada em menos de cinco horas, volta e meia o éter é testemunha de resmungos de que os salgadinhos estavam oleosos, o banheiro estava sujo, a vodka não era Absolut e a cerveja não era Heineken. Povo ingrato.
Lá pelas franjas do fim da festa, o vento frio do outono se anima também, ouriçando a pele das madrinhas de casamento, que ante a crudelíssima dúvida entre o risco da pneumonia e do desalinho estético, não hesitam em escolher a primeira opção, e permanecem semi desnudas no meio da noite fria. Nada mais sensato. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a maioria dos doentes de pneumonia consegue sobreviver após um período de internação, enquanto o vexame de parecer cafona nas redes sociais é uma doença mortal que ninguém perdoa.
A noite avança, os casais com filhos abandonam a festa, o que libera os intrépidos remanescentes para dar um mergulho ainda mais selvagem nas profundezas da noite estrelada. Ninguém liga mais pra marca da vodka ou da cerveja, que agora além de não ser Heineken, também já não está gelada. Gelada mesmo apenas a fina névoa da madrugada que cai como um manto a proteger mais um rito de passagem da espécie humana.
Álcool, hormônios, batida de samba rock e o cheiro agridoce de erva queimada completam o coquetel que incendeia o frenesi coletivo no fim da primeira noite do resto da vida do casal, que com sorte, encerrará fileira na estatística dos que sobreviverão ao teste do tempo e do peso das próprias promessas.
A noite é uma criança. A semente que germina, ainda insuspeita, no ventre da noiva também.
A vida segue, a fila anda e a terra gira.
Alexandre Correa Lima é professor da FGV, escritor e palestrante. Conheça mais sobre seu trabalho no YouTube, Facebook, Linkedin e Instagram.