Incidente na via lateral
O símbolo na placa amarela de formato losangular indica via lateral à esquerda. Em minha mente desenha-se imediatamente a quase invariável estradinha de terra afluindo poeirenta a poucos metros à frente, desembocando na rodovia, minha pouco conhecida, causando no negro do asfalto os desenhos das paralelas de cor terrosa, arte dos pneus dos veículos dali saídos. Pouco afeito a viagens, sobretudo na condição de condutor e ainda mais sem ninguém com quem dividir o fastidioso romper dos quilômetros e quilômetros por retas e curvas, subidas e ladeiras, eu, pássaro combalido, ansioso por regressar ao ninho, afago por desenfado as doces lembranças de casa, constrangido por opressiva ternura, ponho-me a superestimar a extensão das horas que ainda me separam de meu aconchego.
Começo a perceber à margem esquerda uma ou outra flor semioculta pelo capinzal, virente ainda, em decorrência das boas chuvas que parecem não haver se apercebido de quão adiantado já vai o outono. Distraído pelo inusitado da ocorrência e quase esquecido do meu desejo de chegar, reduzo a velocidade ao passo que as flores, antes esparsas, intensificam-se em número e colorido. Quando finalmente minhas vistas alcançam a estrada indicada pela sinalização é que posso avaliar a magnitude da visão. Sinto-me miseravelmente incapaz de descrever a beleza que tenho à minha frente, tampouco ouso expressar o sentimento de que sou tomado. A consciência da minha ignorância a respeito das flores me incomoda um pouco. Saio para o acostamento, desligo o motor.
Decido gastar cinco minutos a esticar as pernas. Sob o arvoredo que se ergue à margem direita onde há ainda uns restos de sombra que o sol da tarde promete eliminar em pouco tempo, mas que ainda oferece algum refúgio a um viajante cansado. Abrigo-me aguçando todos os sentidos no afã de aproveitar ao máximo o momento de refrigério tão raro a um vivente citadino. O silêncio, apenas cortado a intervalos por um veículo que passa sugere a modorra geral dos milhares de pequenos seres que certamente povoam um sítio tão agradável, nessas horas cálidas da tarde, os próprios pássaros buscam o frescor das ramagens para se recolhem mudos, nem é tempo mais das cigarras que só darão o ar da graça novamente em outubro.
Antes de retomar a viagem atravesso a pista e vou ver de perto as flores, cujas primeiras sementes, imagino a julgar pelo grande número de abelhas apenas agora percebidas, certamente foram semeadas por algum apicultor em atividade nas imediações. O interesse econômico de seu ato não lhe há de tirar o mérito, contudo.
Novamente cortando estrada, penso que a partir deste momento terei uma nova ocupação: as flores. Quero saber mais sobre elas. O velho amigo Geraldinho do Engenho, bom despachense companheiro do Recanto das Letras, diz num de seus contos que “Deus não havia ainda criado as flores quando fez a mulher, soprando Ele em sua nova criatura o espírito da vida, o hálito do Criador passando por ela espalhou-se pelos campos dando origem às flores”. É bem possível, caro poeta!
Assim ocupado com minhas novas ideias, surpreendo-me ao deparar-me com as primeiras luzes de minha cidade. O tempo passou, os quilômetros se consumiram. Não vi nem mais uma flor sequer por todo o percurso desde aquele entroncamento florido, embora as tenha buscado com olhos esperançosos. Mas tenho a impressão que daqui por diante as verei com mais frequência.