O pavão

Encontrar um egolátrico em nossos tempos não é evento muito raro, sobretudo quando pelo exercício da humildade se adquire a consciência da transitoriedade das coisas, o egotismo torna-se nota destoante e incomodativa, logo detectável mesmo à distância, dado a pavonice resultante dessa falha de caráter. Pavonice! Ocorre-me o vocábulo não muito por acaso. Eu que cresci admirando o pavão, fascinado por essa ave misteriosa me apresentada por um admirável cearense chamado Ednardo, no tempo em que se aprendiam coisas fabulosas ouvindo as composições musicais, quando estas nos levavam a pensar. Por outros caminhos soube da admiração que inspirou também em grandes nomes da história, como Salomão e Alexandre Magno e de como é mistificado ainda hoje na Índia e na China. Contudo só precisei de algumas horas acompanhando a rotina de um exemplar dessa celebrizada ave pra reduzir todo o meu encanto à simples admiração pela beleza. Desde então a pavonice que me causava o mesmo asco que a arrogância, mesmo que embasada no poder, passou a causar-me apenas... Dó.

Aproveitava o feriado num lugar muito aprazível, em companhia de amigos agradáveis, era verão e a paisagem bucólica resplandecia ao sol de janeiro, inúmeras eram as espécies animais que povoavam o sítio, mas a que chamava mais a atenção era, sem dúvida, a do casal de pavões. Ele desfilando pachola, como que consciente de sua majestade, a coroa na cabeça, que para alguns povos orientais se assemelha a uma estrela de seis pontas e simboliza a conexão com o espiritual, a eternidade e a totalidade, com sua calda de quase dois metros que abre orgulhosamente formando uma roda que para a crença daqueles povos representa o movimento do Cosmos, além dos intrigantes ocelos que segundo uma lenda grega foram colocados ali por Hera para representarem os cem olhos do gigante Argos, morto por Hermes enquanto vigiava a ninfa Lo, que fora transformada por Zeus numa novilha.

O dimorfismo sexual dos pavões deve ser, no entanto a sua mais gritante característica. A fêmea foi enfeada sem dó pela natureza. Aquela, por exemplo, me lembrava uma senhora corcunda, era de cor terrosa, peito branco e pescoço de um verde sem graça. a despeito da fealdade, porém, mantinha no andar e no proceder um ar aristocrático, bem próprio de seu papel de esposa do rei, ostentava também a coroa, embora menos imponente que a do macho. Uma esposa esnobe. O macho a cortejou por todo o dia abrindo seu grande e vistoso leque, numa dança ensaiada por séculos, mas ela me pareceu indiferente aos esforços de conquista do outro, lembravam-me tristemente certas figuras humanas, se bem que a situação daquelas criaturas, sem capacidade de raciocínio e movidas apenas por instintos se afigurava bem menos ridícula.

O sol já se punha quando o pavão teve sua compensação pelo dia inteiro de exibição incansável. O ato de amor de míseros segundos. Pronto. Agora era recolher-se num galho do pequizeiro, emitir os últimos cantos de corneteiro desafinado e esperar por nova aurora quando recomeçaria seu novo dia de rei.

E desde aquele dia mudei meu sentimento com relação aos adeptos do culto de si mesmo. É inevitável não compará-los àquela ave tão cercada de mistérios.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 30/05/2019
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