Publicações anteriores desta série: (pesquise pelo nome do autor)

  Crônicas de Brandão - Introdução
  Crônicas de Brandão - 1) O Mico da Lanchonete
  Crônicas de Brandão - 2) O Brado Retumbante
  Crônicas de Brandâo - 3) A Gincana da Torta de Maçã
  Crônicas de Brandão - 4) RRRaii RRRoberrrt!!!
  Crônicas de Brandão - 5) Putz...Melou!!
  Crônicas de Brandão - 6) Perseguindo a Polícia
  Crônicas de Brandão - 7) Acabou em Pizza! 
  Crônicas de Brandão - 8) Louça Suja se Lava em Casa!
  Crônicas de Brandão - 9) A Velhinha de Taubaté
 

Crônicas de Brandão

10 – Matusa... para os íntimos
 
       Algum tempo após seu retorno de Columbia a Brasília, Brandão comprou um Opala 75, amarelo, seminovo, praticamente sem uso, de um diplomata da embaixada americana em Brasília que retornava a seu país. O maior atrativo do carro era o fato de ter sido preparado, na fábrica, com câmbio automático, para satisfazer o desejo do diplomata de manter pelo menos um requisito dos tantos que havia perdido por ter que dirigir um carro brasileiro daquela época.
   
       Brandão curtiu muito, e por muitos anos, aquele carro, mantendo-o como um troféu, embora adquirisse outros automóveis mais modernos quando o Opala já tinha idade avançada. Era hábito de Brandão atribuir um nome carinhoso a qualquer carro que tivesse. O Opala, depois de uns sete ou oito anos de idade - o que era muito para um automóvel brasileiro projetado e construído antes da era da globalização - foi batizado de Matusalém.


       Enquanto Matusalém ainda servia com muita disposição ao comando de Brandão, mesmo idoso que era, eu, em São Paulo, resolvi fazer uma surpresa jamais esperada por minha esposa. No dia de seu aniversário dei a ela um Gol 83 0km, refrigerado a ar, modelo básico. Era o que tinha para o momento. Mas ela ficou muito feliz, principalmente por que era a primeira vez que tinha um carro para chamar de seu. Como tínhamos o seguro do carro da família que eu utilizava no dia a dia, resolvi não o fazer para o recém-adquirido patrimônio, de valor bem inferior.

       Matusalém 75 e Gol 83 jamais poderiam imaginar que suas vidas se cruzariam, e muito menos da forma insólita como isso ocorreria.

       Em meados de 1984 minha esposa contraiu uma artrite no joelho que a impediu de dirigir por um bom tempo, pois as mudanças frequentes de marcha, no trânsito de São Paulo, já congestionado naquela época, não permitiam que seu joelho cumprisse a recomendação médica de repouso absoluto.

       Mas ela já se acostumara a utilizar seu carro para as compras, levar as crianças para seus compromissos e outras tantas utilidades que um automóvel à disposição podia proporcionar. A limitação do joelho tirou dela toda essa comodidade. Muitas dessas atividades passaram a ser desempenhadas por mim, mas com severas restrições devido aos compromissos profissionais.

       Foi quando Matusalém 75, câmbio automático, me veio à mente. Por que não promover um intercâmbio automobilístico entre Matusalém 75 e Gol 83 até que o joelho se recuperasse? Diante da possibilidade, sempre restrita pela distância, de um encontro entre nós, fora de programação, Brandão concordou imediatamente.

       Sozinho, dirigindo Gol 83, lancei-me na estrada para Brasília. O encontro foi caloroso, como sempre, embora curto para nossas expectativas. Nessa altura já éramos compadres, desde quando tínhamos, eu e minha esposa, batizado Raquel, a primeira filha de Brandão logo após nosso retorno dos Estados Unidos.

       Gol 83 iria servir à esposa de Brandão, como o vinha fazendo Matusalém.

       - Comadre – disse eu entregando-lhe a chave - espero que se adapte sem problemas. Sei que a troca não lhe é favorável e, por isso, lhe agradeço muito - claro, as palavras foram outras, das quais nem me recordo, mas pelo menos era essa a intenção.

       No terceiro dia após minha chegada a Brasília, estava pronto para voltar, agora no comando de Matusalém 75 câmbio automático. Foi então que Brandão me surpreendeu:


       - Vou com você e volto de ônibus - Além de sua paixão por viagens, Brandão adorava passar horas na estrada trocando experiências, ideias e histórias de vida comigo. Sempre que podíamos fazíamos isso. Foram 13 horas de viagem, com poucas paradas e muita conversa. Assim, estendemos nosso encontro por mais uns dias.

       A estratégia foi perfeita para resolver os problemas logísticos da família. De câmbio automático, minha esposa retomou sua mobilidade e sua rotina.

       Brasília é uma cidade plana, famosa na época inclusive por prolongar a vida dos automóveis de estrutura pouco robusta de então. Com seus quase dez anos de vida, Matusa, como Brandão o chamava na intimidade, resistia com galhardia à demanda de Brandão e esposa, motivado pela suavidade com que se podia dirigi-lo na capital federal.

       Em São Paulo não. Trânsito pesado, ladeiras, trocas frequentes de marcha, Matusa não estava habituado a tal crueldade.  A deterioração natural pela idade acabou por se manifestar. O mecanismo do câmbio automático rompeu-se.

       Foi uma tortura! Não o fato de perdermos novamente a habilidade de locomoção. Mas o constrangimento de ter que anunciar o desastre a Brandão. Antes de fazê-lo, procurei uma oficina especializada em carros automáticos e pedi um orçamento. Dez dias para o reparo a um custo quase equivalente ao valor de mercado do carro. As peças eram todas importadas e a mão de obra era especializada. Era bastante dinheiro e eu sabia que teria que arcar com os custos do reparo.

       Embora a debilidade, de fundo geriátrico, do conjunto de marchas automáticas tivesse sido construída ao longo dos anos, na mão dos Brandão, ainda assim, o evento ocorreu quando Matusa estava sob minha responsabilidade.

       De posse das informações liguei para Brandão, com a intenção de logo anunciar que assumiria a responsabilidade pelo reparo.

       - Compadre, você não sabe o que aconteceu. Estou profundamente constrangido. Quebrou a caixa de câmbio do Matusa. Mas já fiz o orçamento e vou mandar consertar. Tudo por minha conta.

       Do outro lado da linha um silêncio, que parecia denotar um grande aborrecimento do proprietário, tão zeloso e apegado ao automóvel, uma joia de imenso valor afetivo. Finalmente Brandão falou:

       - Compadre, você também não sabe o que aconteceu. Ontem roubaram seu carro no estacionamento do shopping.

       O silêncio agora partiu do meu lado da linha. Ao mesmo tempo em que sentia pela perda do meu carro, sem seguro, a notícia aliviava-me da culpa de ter detonado o câmbio do Opala. A situação era cômica, se não fosse trágica. O que se seguiu foi uma rica troca de argumentos.  De minha parte eu justificava porque deveria assumir todo o prejuízo, já que fora de minha iniciativa a troca, já sabendo que o Gol 83 não estava segurado. De parte dele, a proposta era que assumisse ele, Brandão, toda a responsabilidade, já que a caixa de câmbio, já cansada, estava para ruir a qualquer momento, e o roubo do meu carro não haveria ocorrido se a esposa tivesse tido o cuidado de não o deixar, à noite, em local isolado e pouco frequentado, como aquela ala aberta do estacionamento do shopping.

       Mas, ao final, o lado cômico da situação prevaleceu e a argumentação converteu-se em risadas incontidas pelo inusitado da história. O prejuízo ficou somente por conta da reparação dos danos, cujo custo foi dividido igualmente entre as partes. O quanto nossa amizade lucrou com a experiência superou imensamente os custos da tragédia.
 
Roberto Guelfi
Enviado por Roberto Guelfi em 25/05/2019
Reeditado em 28/07/2019
Código do texto: T6656282
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