DA TAL VIDA A DOIS
Falar de casamento é remoer um chão que começa veludo, depois braveja, trovoa, desatina, descarrilha, mofa.
Nem todo casamento rege um roteiro assim, mas todo casamento experimenta roteiro assim ao longo de sua fornada, experimenta sim.
A rotina de sol-após-sol, os mesmos cheiros, rebarbas, entulhos, reflexos no espelho, destituem qualquer casal do papel de amantes para traduzi-lo capenga nas ladainhas previsíveis, naquelas novelas sem suspiro, naquele sangue sem clamor, sem tempero, sem sorriso.
Então, acaba se convertendo numa fé puída, perde seus engates originais, enferruja aquele tesão que, outrora, aglutinava, entorpecia, regenerava. Aguçava atiçando.
Daí o tal casal se percebe numa andança meio atrofiada, desaquecida, desarmada, um tanto morta apesar dos corações ainda suarem parcos acordes.
Bem que poderia cada um se mandar pra um lado, bem que poderia cada um rasgar o vínculo rouco que ainda os persegue, bem que poderia...
Que nada. Estão envelhecidos, cansados de renascer, vagando a esmo numa história opaca, sem gosto, doentia, cheia de remendos mal-ajambrados.
Diante desse encardido acorde, só lhes resta embutir as feridas que já secaram, enfurnar os perrengues que tanto atormentavam, sem fugir do seu curso, do seu desígnio, do seu cadafalso inócuo e senil – a tal vida a dois.
Vão aguardar o último suspiro do outro num torpor pálido, amedrontado, falido.
Por vezes delineando momentos de lucidez que até ameaçarão mostrar as unhas, mas que se prostrarão mancos e inertes numa vigília desafinada, girando em falso, cariada na alma, no endereço, na alegoria.
Triste arremate pra quem, num passado distante, se lambuzava em paixão, em carinho, em gozo, em futuro feliz.