NA CALADA D A NOITE - A CASA DE GERTRUDES
(16/03/2011)
Coisa que aprecio,e muito, são caminhadas. Nas manhãs, à tardinha e há ocasiões em que costumo sair à noite.
Hoje, em minhas andanças,tomei rumo num trecho de meu bairro,pela rua ora denominada "São Paulo".
A noite já caída por inteiro,num céu polvilhado de estrelas,o fascínio da lua crescente.Um friozinho característico de meados de março e eis-me !
Liberto em pensamentos pelos espaços quase desertos.
Casas bem cuidadas,jardins,alguns poucos ruídos recheando moradias e eu ,ali.Atento às novidades que fazem por vezes sentir -me um forasteiro no rincão em que nasci.
Não considero-me um alienado,e assim,reconheço e valorizo o novo,o progresso,consciente da importância disso no contexto de desenvolvimento da comunidade.
Maass!...O lado rebelde que ainda me habita ,atiça-me e na rua adormeçida em berço "desértico", ninguém a perceber-me, aproveito para fazer aquilo que aprecio:
Reconstruir cenários.
Então...No ponto exato em que a rua que me leva é cortada por outra que não me recordo a denominação,dou-me o direito de banir aquelas moradias todas “certinhas”,coloridinhas,com seus muros caprichados,portões eletrônicos e outras amenidades do gênero,que ocupam agora o que no passado eram casarões rústicos de madeira,alguns casebres,pequenas casas,entre as quais...
A casa de dona Gertrudes,a “Nhá Tuca”.
Passo a borracha na paisagem atual e aos poucos vejo ressurgindo,ainda que meio desbotada,a casinha de madeira cheia de anexos (puchadinhos) que acabava numa cozinha de chão batido ,com duas pequenas janelas abrindo-se para o quintal.
Fui entrando.
Nhá Tuca ,com seus quase cem anos,sentadinha próxima à janela.
Chovia.
Era uma daquelas chuvas mansas que benzem e fecham verões.Sob as asas,debaixo da figueira,uma galinha agasalhava a ninhada de pintinhos que acabara de nascer.
Da janela, a idosa os contemplava.
Escorria do telhado uma biquinha de cristal miúdo e a mansidão da tarde igualava-se ao esboço de sorriso a passear-lhe a face.
As primeiras palavras brotaram-lhe entusiasmadas:
-“ Nasceram ontem.Não são mesmo uma beleza ?! ” Disse-me,apontando para a galinácea .
-Sim,foi a lacônica resposta que lhe dei.
[ Nem poderia ser outra ]
Sob a ramagem da figueira aqueles pequeninos seres,tão amarelos quanto os frutos pendentes pelos galhos dos pessegueiros perfilados no entorno da cerca de ripas,espiavam curiosos o mundo novo que os acolhia.
O quintal,lavado de chuva, aquela mistura de odores de frutas e capim molhado,de ervas de cheiro e plantas.Os olhos daquela senhora ,hospedeiros de meiguice e uma quase ingenuidade.A porção criança despertada na anciã a ruminar o tempo na janela que abria-se para o que ainda lhe restava de sonhos.
E como era bom ouvi-la !
A voz rouca,quase gutural,permeando ternura e alguma ranzinzice ,transmitindo a segurança de quem muito conhecera da vida.
Um pouco abaixo,cumeeiras desafiavam céus,delatando a casa de seu filho mais velho.Pés de tuna enfileiravam-se abrindo alas à carcaça da cabeça de boi presa ao portão.
-"É para espantar os maus olhados”,enfatizava -se.
Bem mais distante,enfiada entre as pereiras,a casa de minha infância.Era de lá ,incumbido na missão de mensageiro, que a pedido de minha avó paterna saí à lembrar Nhá Tuca do costumeiro encontro das quartas feiras.Um grupo de idosas que reunia-se semanalmente para falar das “novidades do mundo moderno” (anos 50),selando os encontros à pratinhos de ágata com leite fresco ,farinha de milho e fatias de marmelada.
De repente um carro aproxima-se de uma das moradias na rua São Paulo. Discretamente despacho o menino molhado de chuva pelas estradas do tempo,recomponho o cenário atual e ..vou andando,como se nada tivesse ocorrido.
Somos, motorista e eu,dois seres desconhecidos.À mim,entretanto,cabendo o privilégio de ,muito antes que ele acionasse o controle que abriria o seu portão,ter pisado aquele espaço, enquanto quintal ,num dia molhado de chuva, com figueiras,ninhadas e pêssegos sumarentos,no ponto exato por onde agora ele estaciona o carro.
Sim! Era ali ,a "casa de dona Gertrudes".
- Quem é você?..Perguntam-me os botões: Sonhador?...Saudosista?...Maluco ?...
Pouco me importa o que pensem.
Sigo em frente.Lua e estrelas varam-me a alma,e isso me basta.
(16/03/2011)
Coisa que aprecio,e muito, são caminhadas. Nas manhãs, à tardinha e há ocasiões em que costumo sair à noite.
Hoje, em minhas andanças,tomei rumo num trecho de meu bairro,pela rua ora denominada "São Paulo".
A noite já caída por inteiro,num céu polvilhado de estrelas,o fascínio da lua crescente.Um friozinho característico de meados de março e eis-me !
Liberto em pensamentos pelos espaços quase desertos.
Casas bem cuidadas,jardins,alguns poucos ruídos recheando moradias e eu ,ali.Atento às novidades que fazem por vezes sentir -me um forasteiro no rincão em que nasci.
Não considero-me um alienado,e assim,reconheço e valorizo o novo,o progresso,consciente da importância disso no contexto de desenvolvimento da comunidade.
Maass!...O lado rebelde que ainda me habita ,atiça-me e na rua adormeçida em berço "desértico", ninguém a perceber-me, aproveito para fazer aquilo que aprecio:
Reconstruir cenários.
Então...No ponto exato em que a rua que me leva é cortada por outra que não me recordo a denominação,dou-me o direito de banir aquelas moradias todas “certinhas”,coloridinhas,com seus muros caprichados,portões eletrônicos e outras amenidades do gênero,que ocupam agora o que no passado eram casarões rústicos de madeira,alguns casebres,pequenas casas,entre as quais...
A casa de dona Gertrudes,a “Nhá Tuca”.
Passo a borracha na paisagem atual e aos poucos vejo ressurgindo,ainda que meio desbotada,a casinha de madeira cheia de anexos (puchadinhos) que acabava numa cozinha de chão batido ,com duas pequenas janelas abrindo-se para o quintal.
Fui entrando.
Nhá Tuca ,com seus quase cem anos,sentadinha próxima à janela.
Chovia.
Era uma daquelas chuvas mansas que benzem e fecham verões.Sob as asas,debaixo da figueira,uma galinha agasalhava a ninhada de pintinhos que acabara de nascer.
Da janela, a idosa os contemplava.
Escorria do telhado uma biquinha de cristal miúdo e a mansidão da tarde igualava-se ao esboço de sorriso a passear-lhe a face.
As primeiras palavras brotaram-lhe entusiasmadas:
-“ Nasceram ontem.Não são mesmo uma beleza ?! ” Disse-me,apontando para a galinácea .
-Sim,foi a lacônica resposta que lhe dei.
[ Nem poderia ser outra ]
Sob a ramagem da figueira aqueles pequeninos seres,tão amarelos quanto os frutos pendentes pelos galhos dos pessegueiros perfilados no entorno da cerca de ripas,espiavam curiosos o mundo novo que os acolhia.
O quintal,lavado de chuva, aquela mistura de odores de frutas e capim molhado,de ervas de cheiro e plantas.Os olhos daquela senhora ,hospedeiros de meiguice e uma quase ingenuidade.A porção criança despertada na anciã a ruminar o tempo na janela que abria-se para o que ainda lhe restava de sonhos.
E como era bom ouvi-la !
A voz rouca,quase gutural,permeando ternura e alguma ranzinzice ,transmitindo a segurança de quem muito conhecera da vida.
Um pouco abaixo,cumeeiras desafiavam céus,delatando a casa de seu filho mais velho.Pés de tuna enfileiravam-se abrindo alas à carcaça da cabeça de boi presa ao portão.
-"É para espantar os maus olhados”,enfatizava -se.
Bem mais distante,enfiada entre as pereiras,a casa de minha infância.Era de lá ,incumbido na missão de mensageiro, que a pedido de minha avó paterna saí à lembrar Nhá Tuca do costumeiro encontro das quartas feiras.Um grupo de idosas que reunia-se semanalmente para falar das “novidades do mundo moderno” (anos 50),selando os encontros à pratinhos de ágata com leite fresco ,farinha de milho e fatias de marmelada.
De repente um carro aproxima-se de uma das moradias na rua São Paulo. Discretamente despacho o menino molhado de chuva pelas estradas do tempo,recomponho o cenário atual e ..vou andando,como se nada tivesse ocorrido.
Somos, motorista e eu,dois seres desconhecidos.À mim,entretanto,cabendo o privilégio de ,muito antes que ele acionasse o controle que abriria o seu portão,ter pisado aquele espaço, enquanto quintal ,num dia molhado de chuva, com figueiras,ninhadas e pêssegos sumarentos,no ponto exato por onde agora ele estaciona o carro.
Sim! Era ali ,a "casa de dona Gertrudes".
- Quem é você?..Perguntam-me os botões: Sonhador?...Saudosista?...Maluco ?...
Pouco me importa o que pensem.
Sigo em frente.Lua e estrelas varam-me a alma,e isso me basta.