Se você acorda pela manhã com dor de cabeça, um analgésico será suficiente; se inflama a garganta, um antibiótico; se tem sinusite, um descongestionante será a solução. Tudo isso é passageiro, uma intervenção direta e pronto. Mas existe uma parcela da população mundial, 5%, que não tem a mesma sorte, e faz parte de um seleto grupo que precisa aprender a conviver diariamente com a dor. Um diagnóstico que vem crescendo nos últimos anos e para o qual não se tem cura. Se até um abraço dói, imagine o quão debilitante é. E assim nasce a doença:

E depois de passar meses procurando uma resposta para algumas dores inexplicáveis, submetendo-se a uma bateria de exames e visitando os mais variados médicos nas especialidades menos populares, eis que a ficha caiu:

- Vamos fazer os últimos exames possíveis na área médica, mas sinceramente, por eliminação e pela experiência de mais de 10 anos nesta área, posso sugerir um diagnóstico: Fibromialgia.

 
As sensações foram também inexplicáveis, uma espécie de mini infarto, uma falta de ar, uma taquicardia, uma dor de barriga, uma vontade incontrolável de ir ao banheiro, um enjoo, um piripaque, uma sensação de AVC. Tudo isso em apenas 60 segundos. Era uma avalanche de imagens que contava a sua história de forma impactante e assustadora. Respirou fundo e perguntou:

- E então Dr. tem cura? É uma doença emocional não é?
- É uma resposta mal educada, do sistema neurológico, para uma vida cheia de ansiedades, de decepção, de cicatrizes e de mágoas. É como se o corpo recebesse uma mensagem de uma parte do corpo não paupável ou materializável, e não tivesse possibilidade de responder, guardando os recados de forma tão pouco criteriosa que, de repente, a caixa não suporta mais e se abre, deixando exalar o que de fétido sobrou daquele lixo, tendo o próprio corpo que lidar com as consequências. Mas não se preocupe. Não tem cura, mas tem controle e o doente pode ter uma vida quase normal, apesar das crises.
- Poucas pessoas me deixaram sem palavras, mas o senhor...


Sendo ela a maior apaixonada por palavras, fazendo delas as suas companheiras diárias, num conto, numa crônica, num poema ou num artigo, todos com muito pouco dela, mas do mundo, de suas mazelas. Descreveu pessoas inteiras, nuas em matérias, em seu cotidiano, num infinito pra lá de particular. Deu os sorrisos mais sinceros, os abraços mais fortes, consolou almas fatigadas, usou argumentos sobrenaturais para ajudar aqueles que tinham perdido a esperança. Falou desse “trem da vida”, dos embarques e desembarques, das viagens perdidas, das fases, do tempo...

- Foi duro. Como pode? Ela não cria que fosse possível (negação). - Por que? Comigo não! Como assim, cara? Estas frases prontas e cheias de esperança numa resposta, para uma mente acelerada, que deveria vir do universo, enquanto o Dr., como que numa outra dimensão, explicava delicadamente sobre os exames aos quais seria submetida nos próximos dias, meses.

Ela ouvia, mas ao mesmo tempo viajava num avião à jato, que fazia todo o percurso da sua vida até que foi surpreendida por um “tiro” que partiu da boca do médico ( agora terapeuta), que atingiu seu peito de forma direta, alojando assim, sua bala, na alma (vocês vão entender):

- Não dá pra fingir que vive num mundo onde o físico e o mental não se equilibram. É uma balança. Por vezes, para manter a sanidade é preciso ser diferente, agir diferente, fora do padrão. Correr sem pressa atrás dos sonhos. Despedir-se dos bloqueios mentais de dependência dos outros. Não somos escravos, a abolição da escravatura nos livrou. O sistema nervoso e suas ligações são o último suspiro de um corpo que já tem falência múltipla dos órgãos. Mas saiba que, esta morte prematura e silenciosa pode ser apenas um recomeço, mulheres são Fênix! Morre, mas ressuscita!

 
Ela queria morrer mesmo, mas era naquelas falas tão recheadas de verdade, daquele médico. Ele não sabe, mas queria ela fazê-las de tapete mágico e promover um revezamento pra conseguir acompanhar e aproveitar cada uma, em sua totalidade. Sentiu vergonha. Não do médico, mas dela, daquela pessoa que havia assumido o papel de coadjuvante de sua própria história, sem edição especial, sem direção, sem propósito. Ser o que gostariam que fosse e não o que era, quem era. Era uma mente insana que insistia em viver à espera de um aval social, pessoal. 

Foi tão forte lembrar dos voos que perdeu por causa do tempo... Da falta dele, ou assumir prioridades que não eram delas;
Lembrar das bagagens desnecessárias que carregou com receio de que algo pudesse acontecer e não queria ser pega de surpresa, bem como daquelas que foram extraviadas antes mesmo de chegar ao seu destino ou aquelas que foram um peso, desnecessário;
Lembrou das malas que viu passar pela correia que eram idênticas às dela, mas que por um detalhe ou outro, mesmo sem identidade, sabia reconhecer, apesar do tempo dispensado e do cansaço visto a olho nu;
E quantas vezes estava ela lá, toda lascada, sem zíper, sem cadeado e sem alguns dos seus pertences;
Lembrou das vezes que, por medo, não abriu a janela do avião para vê-lo decolar e perdeu o voo quase perfeito e a vista extraordinária;
Lembrou das vezes que segurou firme na mão para se sentir segura, repetindo sem nenhum critério as orações do Pai Nosso e Ave Maria. Foram tantas, horas intensas de bate boca, mas no coração, apenas um medo e uma distração;
Lembrou de quantas vezes recusou um lanche oferecido pela aeromoça, apenas para não se mexer e não correr o risco de sair da zona de conforto, mesmo que o sorriso, a atenção e o carinho delas, tenham sido o que ficou;
Lembrou das vezes em que foi orientada a colocar o cinto, bem como daquelas em que insistiu em tirá-lo por lhe causar um certo desconforto, sem mais. Era o conforto ou a segurança e ela preferiu o primeiro;
Das turbulências nunca se esqueceu. Era capaz de descrever e pontuar cada uma delas com maestria. É como se fosse uma espécie de bagagem mental completa. Nunca conseguiu trazer nada de novo, estava tudo abarrotado antes mesmo de sair;
E por fim, lembrou das vezes que deixou de voar sozinha porque sempre acreditou que era preciso companhia pra conseguir ir longe, além do mais, a bengala da segurança não era a sua especialidade;

Tantas lembranças que foram acordadas com um choque ao olhar para o Dr. que, com um ar sublime, interrompeu a sua viagem aérea com uma frase tão calma e confortante, que parecia uma oração:

- Olá! Médico aqui. Tudo bem? Podemos continuar? Precisa de uma água, um ar puro.
- Sim, Dr. Desculpe.
- Assim que conseguir os resultados dos exames, marque um retorno para que possamos fechar este diagnóstico. Vou te passar um medicamento, caso a situação piore ou esteja intolerante à dor. Mas vale ressaltar, alguns caminhos percorridos por alguns antídotos, jamais terão as mesmas características. Não se volta a estava zero sempre. As vezes, recomeçamos da dois, três...
- Obrigada, Dr. Essa história de morrer em vida mexeu um pouco comigo, sabe? E como sempre quis ser cremada, estou aqui pensando onde jogo as cinzas. No mar! É o que mais lembra amplitude e profundidade... E sobre o diagnóstico Dr., sinceramente, eu já o tenho, agora preciso me preparar para a primeira dose do remédio, afinal, algumas coisas não tem volta! Até breve!
E se não é a doença do século, dizem os especialistas que é a depressão que vem em primeiro lugar, é prima-irmã, e, portanto, nosso papel deve ser de apoiar o doente e tentar ajudá-lo a amenizar os impactos de um diagnóstico tão frustrante que instiga médicos em todo mundo, procurando uma resposta. E quem, diante desse mistério não gritaria: Fibromialgia não!

E antes que confundam o diagnóstico, não tenho Fibromialgia! O relato faz parte do processo criativo.
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 22/05/2019
Reeditado em 22/05/2019
Código do texto: T6653377
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.