PICADINHOS ROSEANOS - PARTE III
1-Ganhei preciosa caixa de papelão com muitos recortes literários de diversas datas. Mais útil e nada egoísta dividir informações com outras pessoas.
2-Havia o projeto de editarem um dos livros fundamentais do país, "Grande sertão..." em HQ (notícia impressa em 6/2/11) - alguém me confirmou 'graphic novel', edição de luxo, 7.000 exemplares. (Infância e juventude do escritor na zona de Urucuia, talvez daí, em grande parte, sua visão regionalista.
3-No cinema, inverno de2009, temporada da secas em Minas Gerais e aridez necessária para as filmagens, no solo mineiro, em São Gonçalo do Rio das Pedras, arredores de Diamantina, do mítico personagem MATRAGA /do livro "Sagarana"/ em suas angústias existenciais - anti-herói !duro, doido e sem desença" (palavras do criador), imagem trágica e poética, anteriormente filmado e teatralizado (inclusive montagem mais popular em tom de musical). Metáfora para o sertão que existe na alma de cada homem, não comédia - ex-fazendeiro, caído numa emboscada, deixado à beira da morte, em jornada de violência e derrota, até renascer, dividido entre fé e a vingança, apenas isso... Duas naturezas conflitantes: guerreiro X natureza religiosa que traz da infância. A mitologia roseana descreve os jagunços como deuses.
4-Cinema de novo. Na caderneta de JGR, viajando com um grupo de boiadeiros pelo (antigo) sertão de Minas Gerais; "O galo cantou na serra / Da meia-noite pro dia / O touro berrou na vargem / No meio da vacaria / Meu coração doeu / De saudade da Maria." - Documentário "Na rota dos sertões", média-metragem de 26 minutos, de SÍLVIO TENDLER, 60 anos depois da famosa expedição. Paisagem geográfica e humana mudou toda - as vargens, afetadas pela agroindústria, secaram e o vaqueiro, figura central no imaginário do escritor, vem perdendo função econômica e social na região, como resultado do transporte automotivo de carga. Sumiram a tradição da vestimenta típica - o gibão e o chapéu de couro! Vaqueiro remanescente usa roupa moderna (jeans e camiseta), bebe refrigerante em copo plástico descartável ou direto da lata e se comunica... por celular. --- A boiada original, de uma fazenda a outra distante, durou 10 dias, 40 léguas (no linguajar da época), ou seja, 240 quilômetros - 8 vaqueiros levando 600 cabeças de gado, acompanhados de uma equipe da revista "O Cruzeiro", que registrou tudo numa reportagem, que incluiu o trabalho dos vaqueiros, cantigas-jogos-danças populares, remédios caseiros e detalhes da paisagem. O líder da comitiva de sertanejos, MANOEL HARDY, inspirou JGR na construção do personagem Manuelzão na novela "Corpo de baile" (1956 - publicado posteriormente em 3 volumes: "Manuelzão e Miguilim", "No Urubuquaquá, no Pinhém" e "Noites do sertão"). --- Ao refazer o percurso, a equipe do filme descobriu que três das dez fazendas antigas já não existem mais; veredas e mananciais, cenário da obra, sofreram com a vida moderna. (Sim. O que esperar 60 anos depois?) Somente não mudou o aboio, canto sem palavras que vaqueiro ainda usa para conduzir o gado. Veredas estão secando na região usada para o plantio do eucalipto, destinado à indústria de madeira e do papel. Em todo caso, preservadas fauna e flora do cerrado no Parque Nacional Grande Sertão Veredas, entre as divisas de Minas e Bahia.
5-Houve quem (OSVALDINO MARQUES, em livro, 1985) o dissesse um verdadeiro cineasta sem câmeras na produção externa de um fabuloso documentário; por dentro, ele descortinou o real nos olhos inocentes dos animais; mesmo os irracionais são revelados quase humanos, união de poesia e verdade. // "O touro estacou. Era zebuno e enorme. O vaqueiro, a pé, não lhe inspirava o menor respeito. Cresceu, sacudindo a cabeça, cocoruto e cachaço, como um sistema de torres superpostas." // "E o rebu-açu, leso o equilíbrio, trambolhou de todo, que nem mancornado, e desmoronou-se com todas as suas cúpulas..." // Tipo de teto em forma de semi-esfera que não cambaleia: excentricidade retórica. Descrição teatral, mística. // "As vacas mugem. Vibra no espaço, tonto, terno, quase humano, o sentimento dos brutos. Libera-se, doendo, o antigo amor, plantado na matéria." // Como arquiteto, mestre na organização do espaço: "...passou a grande gaivota, enseando cinco curvaturas, ponta asa a ponta de asa" --- como pintor, povoa o campo visual de todas as dádivas da retina: "desejavam sempre uns grandes lírios: jamais trivial o nevar das garças, veramente fascinante. Um bando de emas guardou-se entre os tufos do carona. O vento lambia o capim, como se alisa um gato. (...) uma vacariga branca, espinoteada, despedindo os quartos, os úberes róseos pulando-lhe entre as coxas, como uma enorme flor." --- como músico, dissonâncias estruturadas em harmonia: "Mar a redor, iam-se os Gerais, os Gerais do ô e do oa (...) e água e alegre arrozã..." --- como poeta, quadro plural na unidade: "Em noite de caça, tudo é canto e recanto. E há sempre um cachorro latindo longe no fundo do mundo. E com isso, deixaram todos de caber no dia, que rodou e se foi, redondo e completo, com a tarde a cair rente, uma tarde triste de tempo frio." ----- Em toda a obra, a partir de estudos linguísticos, GUIMARÂES ROSA usa linguagem impregnada de cadência, ritmo , aliterações, onomatopeias, rimas, inversões de sintaxe, elipses, associações raras, metáforas, metonímias, neologismos, associando intimamente as palavras, seus significados e sons.
6-JGR era ainda jovem médico recém-formado e sofreu por não salvar a vida de um paciente. A literatura o chamava, consoladora. "Magma", 91 poemas telúricos e simbolistas /imagens do sertão, versos de amor e até hai-kais, poesia japonesa/, venceu o Prêmio de Poesia da ABL, em 1936, livro inédito por mais de sessenta anos, até 1997, vindo a público. Familiares liberaram a publicação. Finalmente! (O próprio autor não viu interesse em publicar, talvez o considerasse obra imatura, embora elogiada na época do prêmio. Inclusive apenas se tornou um verdadeiro literato dez anos depois, com "Sagarana" em 1946, contos também remoídos dez anos antes.) Tanto o parecer que GUILHERME DE ALMEIDA, relator do concurso, fez sobre os poemas /"...poesia nativa, espontânea, legítima, saída da terra com uma natureza livre de vegetal em ascensão (...) poesia centrífuga, universificadora...". como o discurso (ainda não se julgava poeta?) do 'poetastro' ao receber o prêmio /"...menino que depõe seu brinquedo na superfície translúcida de uma água..."/, foram publicados na Revista da Academia Brasileira de Letras, ano 29, n.53, em carta para VICENTE GUIMARÃES, seu tio escritor, em 28/jan./1938, diz estar fazendo um último expurgo, entregará "Magma" ao editor no próximo mês... e assina como Joãozito - abandonou a ideia. Passou no concurso do Itamaraty (falava 9 línguas -sozinho, aprendeu francês aos 7 anos, sozinho adulto, alemão e russo - e tinha vasta cultura) e mudou-se para o Rio em 1934, roteiro entre circo, ópera cinema, bares da Lapa... e salada alemã com chopp gelado. Leitura compulsiva, trancado no quarto ou no gabinete: lia Platão e Plotino, era grande curioso místico, 'estudioso' de Bíblia, umbanda, quimbanda, maçonaria, profecias de Nostradamus, astrologia, tarô e numerologia... influência gritante no livro de poemas e em toda a prosa. Eleito para a ABL em 1963, usou o pretexto de viagens diplomáticas adiando a posse por 4 anos. Pediu aos amigos que o enterrassem de óculos, "para não chegar praticamente nu do lado de lá".
Alguns hai-kais em "Magma":
"Egoísmo - Se fosses só eu / a chorar de amor, / sorriria..." --- "Mundo pequeno - O albatroz prepara / breve passeio / de Pólo a Pólo..." --- "Romance I - No cinzeiro cheio / de cigarros fumados / os restos de uma carta..."
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FONTES:
"O prêmio da eternidade" / "Primeiras veredas" e "Para Guimarães Rosa, a prosa era o seu destino" / "A hora e a vez de reviver 'nhõ' Matraga" / "Um sertão para não ficar só na memória" - Rio, jornal O GLOBO, 11/8/91 - 13/7/97 - 28/12/08 - 24/11/12.
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