Maravilhas do conto japonês

De “A princesa que amava insetos”, conto clássico do folclore japonês, muito bonito e mesmo ousado, se pensarmos que faz uma espécie de defesa da individualidade, mesmo contrariando tradições e interesses da sociedade, eu registro a seguinte fala, dita pela própria princesa: “Se olhasses um pouco mais além da superfície das coisas, não te importarias tanto com o que os outros pensassem a teu respeito. O mundo em que vivemos não tem realidade, é uma miragem, um sonho. Quer alguém se escandalize com os nossos atos, ou, porque os ache valiosos, se agrade deles, pode a sua opinião fazer-nos qualquer diferença no fim de contas? Em breve, tanto eles como nós não mais nos sentiremos existir”.

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De outro conto japonês, esse moderno, “Dentro do bosque”, de Ryonosuke Akutagawa, transcrevo a fala de um homem que confessava um assassinato por motivos passionais: "Como? Matar um homem não é tão grave com pensam os senhores. Quando se toma a mulher de outrem, este deve, de qualquer maneira, ser eliminado. Somente que, para matar, faço uso da espada que trago sempre comigo. Os senhores não usam espada para isso: matam valendo-se do poder que possuem; matam com o seu dinheiro. Às vezes, matam apenas com palavras, pretextando favores, enganando, ludibriando. Não corre sangue, é verdade. Os homens continuam a viver. Nem por isso os senhores deixam de prosseguir na faina. Avaliando a extensão de nossos respectivos pecados, difícil dizer qual de nós é o maior criminoso".

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Ihara Saikaku, escritor que viveu nos anos 1600, é tido por alguns entusiastas como um contista melhor que Maupassant. Talvez não seja para tanto, mas “O tambor chinês” é um dos seus contos de muito mérito. A história em questão aborda um drama familiar de pequenos tecelões que chega a tal ponto que se cogita o suicídio coletivo de toda a família. A maneira inusitada pela qual se resolveu o problema da família encerra certos interessantes ensinamentos morais. Um escritor que merece ser resgatado.

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Osamu Dazai escreveu uma pérola chamada “A denúncia”. O conto todo é a fala de Judas Iscariotes no momento em que foi entregar Jesus às autoridades. E Judas aparece ali como um homem apaixonado por Jesus, ciumento da atenção que ele dava às mulheres e rancoroso por não receber dele nenhuma manifestação de afeto. Ainda por cima, o Judas do conto sequer acreditava na mensagem de Jesus. Um trecho desse impressionante conto: “Tudo quanto diz é despropósito, completo despropósito. Não lhe dou o menor crédito. Creio, no entanto, na sua beleza. Não há neste mundo ninguém mais belo. É com a maior pureza de sentimentos que lhe amo a beleza. Só isso".

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Outros contos a destacar. O belíssimo “Pássaros na primavera”, de Doppo Kunikida, um sensível e poético conto sobre a trágica história de uma criança com deficiência mental. “Até Abashiri”, de Nayoa Shiga, apresenta uma situação cotidiana, mas que ressalta o heroísmo de certas mulheres. “Tatuagem”, de Junitshiro Tanizaki, é um daqueles contos em que o sensualismo feminino, que dizem ser forte na literatura japonesa, se faz presente. “A profissão de salva-vidas”, conto fantástico de Kan Kikutchi sobre uma velha que se especializou em resgatar suicidas que pulavam de uma ponte. A história escapa do senso comum que se esperaria de semelhante trama. “A espingarda”, de Yasushi Inoue, escrito sobre múltiplos pontos de vista e com certa dimensão “russa”. “Tempo”, de Riichi Yokomitsu, é um excepcional “thriller”, muito bem contado e conduzido. “Professor vento”, de Ango Sakagutchi, conto surrealista que lembra aquilo que o Campos de Carvalho fazia e, por elementos estruturais, lembra até o Machado. “Corrida de cavalos”, de Sakunossuke Oda, também é interessante, assim como “Ternuras que fenecem”, de Saisse Murou, sobre uma mulher que persegue um homem por não aceitar o fim do seu relacionamento.

Sobejam, pois, razões para mergulhar mais a fundo na prosa curta japonesa.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 19/05/2019
Reeditado em 19/05/2019
Código do texto: T6651109
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