A TUA PERTENÇA ESTÁ NO TEU PASSADO

Se for possível, não envelheça com quem não te poderá dizer: lembro-me! Teu lembramento não poderá ser compartilhado, nem entendido para ser comungado, se quem estiver ao teu lado não tiver a tua idade. Se essa pessoa não souber do que você está falando não termine teus dias pensando que ela vai reviver contigo as tuas bem guardadas recordações. Teu lembramento é metafísico; é parte de tuas lembranças e com elas se confunde.

Há quem não ligue pra isso, de envelhecer agarrado nas lembranças. Acham até que nisso há uma certa morbidez paranóica – se é que isso existe – com o passado, relembrar e repassar o que já passou. E também há os que fazem do passado, base de sustentação de seu presente.

Joel, um pianista clássico, depois de três casamentos fracassados e de marcante sucesso internacional executando Mozart durante 40 anos, vive hoje, apaixonadamente, com sua quarta mulher, uma belíssima arquiteta de 40 anos. Joel é bem mais velho do que ela e há uns 20 anos antes dela ter nascido foi vivido seu lembramento. De uma parte dele ela apenas ouviu falar como eram algumas coisas naquele tempo; de outra nem isso. Ele foi sujeito.

- Com Bill Halley e seus cometas, era rock o tempo todo! Lembra? – pergunta com entusiasmo. Bebíamos “cuba-libre” quando Cuba ainda era dominada pelo Fulgêncio Batista e a gente nem se importava com isso. Alienados! E para nos acalmar, dançávamos agarradinhos; passos lentos, respiração forte, porém contida, sonhando com os versos de Maria Grave. Jurame! Beçame! Mucho!Depois, depois da troca de sorrisos cúmplices quando parava a música e a dança, Cole Porter dizia: let´s do it. Let´s fall in love. Era o que a gente queria. Lembra?

Joel dizia essas coisas perguntando se ela lembrava-se como se tudo isso tivesse acontecido com eles. Por isso ela olhava para ele sem nenhum brilho no olhar e com um sorriso amarelado de desconforto.

- Ir ao cinema era um hábito; quase uma obrigação, também. Todos os filmes eram maravilhosos. Bem, tinha uns muito ruins. Mas esses a gente não ia assistir porque nem sabíamos que eles existiam. As mulheres do cinema eram todas lindas e muito desejadas. Doroty Lamour! Rita, ainda casada com Frank, Brigit com Vadin, Sofia com Carlo Ponti. Todas casadas, droga!

Mas podíamos dançar na chuva, como Gene Kelly, with a song in nossos corações; coisa de Rodgers & Hart. E a gente fazia chá-lá-lá-lá e tchu-ru-ru-ru! Pra lá e pra cá. Se você quer ser minha namorada...Ah Vininha querido! Nem sabes, mas a todos os meus amores sempre fui atento. E tanto fui enquanto eles duraram.Lembra?

Ela não lembrava nada. E também quase não entendia essa alegoria toda de falar como se estivesse delirando. Até perecia que não estava dizendo coisa com coisa.

- Depois vieram os conflitos. Vários conflitos. Um depois do outro e muitas vezes uns sobre os outros. A recherche por tempos perdidos sabe-se lá onde, a náusea, o pé na estrada-on the road-o protesto, o braço erguido com a mão fechada, as flores e os fumos, a paz, o amor. You may say that I´m a dreamer. Mas nós não fomos os únicos, caramba! E ainda não somos! Não é mesmo?

Lembra da cavalaria atrás da gente? Joga as rolhas, joga as rolhas! Hay que endurecer, hay que endurecer. Pero sin perder o último ônibus pra casa que já é tarde. Pois sim! Que ternura, cara pálida? As time goes by. Não te lembras de nada disso?

- Não, não me lembro! Deveria?

- Não! Claro que não. Certamente que não!

-Tudo isso aconteceu há muito tempo. Tudo do seu tempo, não é mesmo?

- Do meu tempo, sim. Da história do meu tempo. Quem sabe?

_ Não me lembro dessas coisas; dessas músicas, desses nomes; nada significa alguma coisa para mim!

- Você ainda terá seu repertório! E ele será seu e da sua geração. E vai servir para você recordar e achar que naquele seu tempo as coisas eram melhores. E depois concluir que nada era necessariamente melhor. Eram apenas as coisas que você tinha; as coisas que você conhecia. Era tudo o que você podia dispor. As coisas boas de ontem, na verdade somente são boas hoje. Quando você as compara. E as recorda e smile wen your hart is braking end you use to crayng.

- Credo! Não estou entendendo nada. Você está dando um nó no meu cérebro. Como poderia gostar de coisas que não conheço, que nunca vi, de lugares onde nunca estive; de coisas que não fiz, que não experimentei?

- Gostar! O que significa gostar?

- Isso é outra coisa.

- É outra coisa, sim. Tudo é outra coisa quando não se tem nada guardado para rever, repetir, refazer. Eu também gosto de coisas que não vi. E adoro lugares onde nunca estive. E sinto sabores e odores de coisas que nunca provei. Ouço sons que nunca escutei e odeio e amo pessoas que nunca conheci. Sou capaz de tudo isso, de sentir tudo isso. Imagine então o que sinto re-fazendo, re-sentindo, re-provando e re-gozando as coisas que eu vivi. Coisas que eu fiz e que as provei por inteiro. Você pode imaginar tudo isso; pode compreender tudo isso que eu sinto? Sem ter sido eu?

- Claro que posso! Posso compreender como você se sente, mas não posso sentir com você, Joel!

- Então? É isso!

O olhar dela ficou pendurado no tempo. Ela contemplava Joel com ternura. Com o olhar de quem tinha sido tocada pelo sortilégio da “comunhão perfeita das suas almas”. Por um momento Joel pensou ter encontrado nela a “companheira de minha vida”, como gostava de definir a utopia de se ter alguém para sempre. Acreditava que aquele olhar revelava que ela, mesmo não tendo conhecimento de seus lembramentos, podia compreendê-los; interessar-se por eles a ponto de poder senti-los como ele próprio os sentia, como se tivesse estado ao lado dele em todos aqueles momentos. Um turbilhão de coisas passadas, de tudo o que ele havia vivido em sua juventude, remexeu-se em sua cabeça. E turvou o que ainda restava-lhe de bom senso, de juízo. Joel agora achava que Tudinha – que era como ele a tratava nesses momentos de encantamento – era capaz de comungar seus sentimentos no mesmo grau de intensidade. E com todas a cores, sons e movimentos que esses momentos são capazes de trazer e enganar quem acredita que ainda, mais uma vez, é possível compartilhar lembramentos com quem não é de sua mesma geração. Tudo o que é verdadeiramente teu, e que você domina por absoluto não está aqui e nem pode ser comungado com outra pessoa. A tua pertença está no teu passado. Por tanto, se for possível, não envelheça com quem não poderá te dizer: - Lembro-me sim!É como se fosse hoje!

CESAR CABRAL
Enviado por CESAR CABRAL em 02/11/2005
Código do texto: T66472
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