Cachoeiro de Itapemirim. Anos 50. Descia eu, de bicicleta, a rua Aristeu Portugal Neves para pegar a rua Moreira com destino ao bairro Cel. Borges. Meu compromisso era tomar aula de francês, gratuitamente, com a nobilíssima professora Hertha Athayde, cuja generosidade não se furtara em atender pedido de minha mãe. A expectativa de receber ensinamentos de tão insigne mestra me dava alentos poderosíssimos para desprezar o calor da tarde cachoeirana e seguir em frente. Além do mais, eu adorava ler Victor Hugo e Alexandre Dumas. Quem, de minha geração não leu, Os Miseráveis, O Último Dia de um Condenado à Morte, Os três Mosqueteiros ou ainda o Conde de Monte Cristo, dentre outros. Sempre tivemos um pezinho na França, maior referência da cultura europeia e do mundo. Paris, éternellement Paris. Se expressar em francês sempre foi chic. Para nós, então, cachoeirenses de nobre cepa, nem se fala. Pois é, até eu, moleque do Bairro Independência, cujo sonho maior era somente ser titular no time infantil da Rua Moreira, me sentia a caminho da Cidade Luz, via Cel. Borges, pelas mãos de D. Herta Athayde. Uma beleza de sonho embalado pela fertilidade de minha imaginação juvenil. Ah, elucubrava sempre, a beleza da mulher francesa é inigualável! As atrizes mais lindas e sensuais da época provinham de lá. Brigite Bardot, Catherine Deneuve, apenas como antepasto. Aí, pasmem, ao entrar na rua Moreira, Bardot e Deneuve caíram do pódio. Alguém, de rara beleza, que de tanta era imprópria a qualquer anjo maior, emparelhou sua bike com a minha. Entre perplexo e embevecido captei seu olhar sereno e macio, de uma coloração âmbar, misteriosa, típica da mulher beduína, quando aconchegada em almofadões coloridos em sua tenda no deserto, conscientes do seu poder de dominação sobre pobres homens incautos. Era uma menina? Ou não era? Talvez uma menina-anjo, ou quem sabe, um anjo-menina. E daí? Pouco se me dá, ronronei mentalmente. Importa que ela estava ali. Se em carne e osso ou espírito materializado era para mim indiferente e irrelevante. Devolveu-me o olhar com a tranquilidade dos que se sabem superiores. Seguimos na mesma direção. Imaginei de pronto: na certa vai até o Liceu. Errei. Passamos pelo colégio. Ela um pouco à frente me permitia apreciar a beleza daqueles cabelos negros, em uma só trança, o corpo, esguio, elegantemente ajustado ao selim da bicicleta, qual princesa escandinava, firme na sela de um fogoso Pegasus. Chegando ao Cel. Borges tomei a esquerda em direção à casa dos Athayde. Oh, Deus! Oh Odin! O anjo escandinavo de olhar beduíno buscou o mesmo caminho. Homessa, íamos para o mesmo lugar. D. Herta nos recebeu com o mesmo carinho, próprio de sua fina educação. Não me lembro de como transcorreu a aula, mesmo porque, em transe tudo é multidimensional. Recordo-me apenas do tom aveludado de sua voz e os dentes muito alvos. Uma loucura, aqueles momentos surreais que estava vivendo. Poucos dias de aula aconteceram. Soube que sua presença naquele horário era por conta de reposição de aulas. Também não sei quantos desses dias compartilhamos o caminho até os Athayde. Em verdade, muito pouco conversamos. A mim me era mais agradável e cômodo admirar aquela beleza celestial do que falar. Minha timidez e minha figura de menino magrelo e desengonçado, cabelo cor de palha, desencorajavam qualquer aproximação, imaginava eu. Mas, abóbora não é matéria prima de carruagens mágicas. Assim, um dia tomei aula sozinho. Depois outro, e por aí foi até se encerrar meu ciclo de reforço escolar.
Nunca argui a nobre Mestra sobre aquela presença que tanto me inspirava o estudo do francês. Não gravei o seu nome e jamais a vi na cidade. É bem verdade que procurei encontrá-la durante um certo período. Apenas para vê-la, à distância regulamentar. Insana busca vã. Como se beduína fosse, desapareceu nas dunas do tempo ou quem sabe, retornou ao Olimpo, após a pequena travessura de mostrar, com sua formosura, o modelo a ser por mim perseguido vida afora. O fato foi marcante. Não era paixão ou amor de homem e mulher, mas tão somente um profundo respeito e reverencia à beleza pura do ser construído à semelhança do Criador. Era sim, minha subalternidade ante o belo, o despertar de meu estro poético pela forma mais simples: “Através de uma menina-moça, de cabelos negros, enrolados em uma só trança, de olhos cor de âmbar e porte de princesa escandinava, assentada em seu trono de luz, disfarçado em um selim de bicicleta”.
 
(corrigido e atualizado)