O DIA EM QUE OUVI TITO SCHIPA
Memória, o patrimônio de uma vida. Admiro os memorialistas. Recuperam detalhes, recriam cenários, colocam na boca dos seus atores a palavra precisa, fazem de pequenos acontecimentos do passado um momento especial. E, principalmente, dão vida, e vida nova, àquilo que se esmaecia com o tempo, àquele instante que nem as câmeras fotográficas teriam logrado obter com tanta precisão.
Para os grandes memorialistas (e, felizmente, há tantos!) lembrar é preciso. Como um corte cirúrgico, um teorema de Pitágoras ou uma lei de Newton. E é também necessidade. Como água em dia quente ou cama macia em noite fria. E sua prodigalidade em nos despertar emoções tem o mesmo efeito da abertura de um velho frasco de perfume: rejuvenesce-nos.
Hélas! Não sou bom de memória. Se me lembro de fatos, não alcanço os detalhes. Se me vêm detalhes, desfazem-se os entornos, os contextos. As figuras esmaecem-se, sem que consiga capturá-las com nitidez. As vozes, se consigo ouvi-las, soam distorcidas e distantes. Não tenho, definitivamente, a verve e a lembrança dos que sabem transformar o passado em presente.
Então, não sei quantos anos tinha, naqueles idos em Lavras, na velha Lavras de Minas Gerais: talvez cinco, talvez menos. Por isso, a lembrança enfumaçada e misteriosa. E veio-me, assim, não de repente, mas provocada pela morte, aos setenta e um anos (tão jovem, ainda, costumava dizer minha mãe, sobre o desaparecimento de amigos nessa idade ou até mais velhos!), de Luciano Pavarotti, um tenor que fez sucesso (junto com José Carreras e Placido Domingo) numa época de bandas de rock e cantoras bundudas.
Naquele tempo, 50 ou 51, não havia nem bandas de rock nem cantoras bundudas. Havia Frank Sinatra. E Francisco Alves. E Maria Callas. E muitos outros cantores e cantoras, populares ou do dito canto lírico, de vozes poderosas ou extremamente trabalhadas. Vozes que se perderam nesses últimos cinqüenta anos, ou na mediocridade da mídia e da crítica, ou simplesmente porque ficaram fora de moda. Como se bom gosto tivesse data.
Tinha eu, portanto, pouco mais de cinco anos, quando o alvoroço tomou conta da cidade: Tito Schipa se apresentaria no Lane Morton, o auditório do Instituto Gammon, um prédio imponente bem na entrada do famoso colégio presbiteriano de Lavras. Tito Schipa? Ora, só conhecia um Tito, o atacante do time de futebol da Olímpica que fazia história na época. Mas Tito Schipa?... E ainda mais cantor de ópera! Sabia lá o que era ópera?!
Lavras, naquela época, embora provinciana como toda cidade do interior, era uma cidade metida a besta. E disso eu me lembro bem. Quantas vezes, descendo a longa e torta rua Direita, vindo da missa na matriz com minha mãe, passávamos pelos velhos casarões e ouvíamos sons de pianos e vozes estranhas cantando uma música que eu não entendia, em saraus de música e literatura. E havia os grandes bailes, com orquestras famosas, nos clubes elegantes. E havia a banda do 8º Batalhão da Polícia Militar, a alternar retretas na praça, aos domingos, com a não menos orgulhosa Euterpe Operária. E havia canto coral, e havia teatro. E o famoso Teatro Municipal ainda não tinha sido demolido, embora mais servisse a Holywood que à arte da representação. Enfim, Lavras já ostentava o cognome de Cidade dos Ipês e das Escolas, num arroubo ecológico (acho que essa palavra nem existia, ainda) e cultural.
Porém, tudo isso nem chegava direito à minha consciência, menino de calças curtas e pé no chão, mais preocupado com jogo de bola de gude e com as mangas e jabuticabas de meu quintal e do quintal do vizinho.
Pois, bem: Tito Schipa, o grande tenor (só muito mais tarde compreenderia tanto o adjetivo quanto o substantivo) estaria a poucos metros de minha casa, vizinhos que éramos do velho Instituto. E minha mãe, naquela noite, como não fizesse parte da elite que podia pagar caros ingressos pelo raro prazer de ouvir o tenor, queria porque queria também participar da festa. Como? Se o dinheirinho ganho na antiga máquina de costura mal dava para sustentar-nos?
E então, eu me lembro (ah! como me lembro!), lá fomos nós para as imediações do Lane Morton... e lá de fora, atrás dos muros baixos que o cercavam, no frio da noite cheia de estrelas (ah! o céu do sul de Minas!) de minha Lavras hoje tão distante, pudemos ouvir, eu e minha mãe, embora abafado pelas paredes do prédio, o canto forte, o canto encantado, a voz límpida e pujante do grande tenor.
Foi a primeira vez que tive consciência de que havia no mundo um mundo de arte, de prazer, de encantamento que, embora ainda tão distante de minha condição de menino pobre do interior de Minas, iria formar para sempre o meu gosto por música e por artes que só mais tarde iria desenvolver e, talvez, compreender.
O dia em que ouvi Tito Schipa, cuja voz e cujo canto só muitos anos depois consegui recuperar e admirar como uma das grandes vozes do século vinte, talvez mais bela que a de Pavarotti (que teve a mídia a seus pés), foi o dia de meu nascimento para a existência da arte. E, tomando emprestada de Bandeira a sua expressão, para mim tão recorrente e precisa, sem dúvida, naquela noite fria e estrelada de minha terra natal, tive o meu primeiro alumbramento estético.
17.9.2007