Uma das coisas que mais sinto falta de minha infância é da minha avó. Ela não era uma pessoa, ela era um evento social, uma celebração, um livro aberto, uma oração. Aliás, de oração entendia, mesmo sendo semi analfabeta. Sabia de cor todas as orações rezadas na igreja em latim, repetia várias vezes ao dia, "valet mihi Deus". Até a Ave Maria era rezada em latim. E nós, os netos, aprendíamos na marra, pra rezar o rosário todas as noites, já que morávamos muito perto. Ela era tão devota de Nossa Senhora do Carmo que, dizia seria avisada da hora da morte, por ela, pra ter tempo de se purificar... Jamais rezei uma ave maria pra coitada da Santa, temia mesmo que ela resolvesse me visitar pra dizer que iria morrer, preferia não saber nada, nem hora, nem tempo, a surpresa me amedrontava menos. E não sei se por aviso, ela se despediu no mês de abril, o céu se fechou, logo depois de participar da novena de São José, chegando em casa, preparou o jantar silenciosa e convidou meu tio para a última ceia dizendo: “Geraldo eu não vou mais te chamar.” E numa maischamor, nem ele e nem eu, para comer a conchinha de frango frito.  A semana santa na família era um Natal ampliado, aliás, o Natal nunca foi tão feliz, com 11 filhos e realidades materiais tão diversas, semprre haveria um a chorar as mágoas, sob o efeito do álcool. E outro a esnobar o que o dinheiro podia comprar. Pra o domingo de ramos, tínhamos que catar os manjericões, e as samambaias que eram abençoadas e empacotadas, para no caso de chuva forte, queimar os ramos, emitindo um odor para Santa Clara entender que era preciso diminuir a intensidade. O ramo tinha cheiro de desastre, sempre que chovia muito, as casas ribeirinhas, inclusive de vó, eram inundadas. A segunda-feira era da dor. Todo o ritual de enlutar a casa com panos estendidos na janela e orações para Nossa Senhora das Dores. Na terça era dia do encontro e lá estávamos nós na procissão, cada ano saindo de uma igreja diferente, pra nenhum santo ficar triste (dizia ela). Na quarta era o depósito, nunca entendi o signficado, mas ia pra celebração na capela mor da Igreja principal. Na quinta, os padres da cidade recebiam por nossas mãos, bolos, pães, biscoitos era o dia deles. Jamais pude experimentar um, sequer, "É do padre, menina. Deus não perdoa." Pra ser sincera, não gostava do padre, não podia sequer experimentar a rosquinha dele. Quando vinha me dar a benção, já ia raivosa, ele sempre alertava; "Essa menina, vai longe... Tem personalidade", no fundo tinha mesmo era fome, mas ele atrapalhava. Na sexta-feira era o dia mais triste. Ele tinha morrido. O jejum era inquestionável, por vezes, no dia anterior escondia um biscoito debaixo do travesseiro, pro dia seguinte e comia de porta fechada, o banheiro. Minha avó era muito rígida, não cortava o cabelo e só vestia vestidos com anágua. E era jovem, morreu jovem. Mas no interior de Minas e no seu próprio, havia um respeito inquebrável. Toda sexta-feira da paixão era regada pelo seu quizado, não havia nada com aquele sabor. Fazia panelas gigantes e distribuia na casa de todos os filhos. Na entrega a frase: “Hoje não pode comer carne”.
Neste ano, decidimos fazer este encontro da sexta-feira, com a família, onde todos contribuíam para o guizado. Minhas tias cozinhavam como se fossem fadas do amor-alimento, nos reunimos e parecia que a “coisa” estava lá, ditando as regras, tão bem lembradas pela única filha viva, então sugeri que colocasse algo doce, pra ficar agridoce e os olhares de reprovação pularam até o meu encontro. Disfarcei e saí sorrindo, minha tia tinha incorporado as atitudes de vó e fiquei sem jeito, a respeitava tanto que só o silêncio refletiria. Terminada a obra prima gourmet, a sete mãos, divididas em vasilhas de vidros com tampas coloridas diferentes para cada filho, como ela fazia, minha prima, de mesma idade, pega a vassoura e vai varrer a casa, logo fui buscar a pá e o pano, quando numa truculenta manifestação, minha tia puxa a vassoura das mãos de Alice e olha pra mim como se tivesse cometido um crime, e cometi. Largamos tudo e saímos rindo respeitosamente, lembrando que na Sexta-feira, jamais se poderia varrer a casa porque Jesus estava lá e poderia ser varrido, numa metáfora física. Nós pegamos nossas coisinhas insignificantes e saímos conversando sobre as poltronas que estavam pra cima, e os móveis fora do lugar, estávamos fazendo uma faxina lá em casa, aproveitando a folga. Não creio que Ele vá ficar mágoas, porque para nós Ele teria que encontrar a casa limpa no dia da Ressurreição. Coisas de minha avó que nem o tempo apagou. E a saudade fez um laço de fita preto no dia em que revivemos a Paixão.
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 08/05/2019
Reeditado em 08/05/2019
Código do texto: T6642172
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