Lembranças indeléveis
Ainda me lembro como se fosse depois de amanhã o dia que o meu irmão mais novo nasceu: eram tempos de seca, de sede, de fome, de precisão. Cigarras se esgoelavam e nenhuma formiga ia ao seu socorro. Acabaram os mantimentos dos formigueiros e elas, as formigas, morreram de fome. Ou foi de sede? Não me lembro bem.
Fomos obrigados a irmos pra casa da rua, por causa do carro-pipa que aparecia duas vezes na semana e não andava pelas roças. Não que não quisesse, é que não havia estradas. Cedo da manhã eu saía com o meu irmão Raimundo para levar os animais para beber água no açude e retornávamos perto do meio-dia. Raimundo tinha onze anos; eu, cinco. Um dia chegamos a casa e ouvimos choro de bebê vindo do quarto dos nossos pais. Corremos para lá e havia um moleque arreliento na cama, chupando dedo e dando língua pra nós. Antes que o meu irmão Raimundo desmaiasse de susto com aquela aparição, a nossa mãe apontou para cima, nos mostrou um buraco no telhado, e disse: “Ele entrou por ali. Foi a cegonha quem trouxe”. E que buraco! Metade do quarto foi destelhado pelo meu pai pra cegonha passar com folga, me disse minha irmã, na cozinha, quando fui almoçar.
Até hoje uma pergunta me intriga: como foi que esse meu irmão conseguiu sair da casca do ovo da cegonha se ele não tinha bico feito os pintos que nasciam lá na roça? Já perguntei a ele várias vezes, mas sempre responde que era muito pequeno e não se lembra de nada.
Ah! Esse meu irmão guarda segredos que nem as cegonhas conhecem!