CORAÇÃO DE TORRADEIRA
Bateu duas e vinte.
Eu fiquei observando a cidade da sacada e eu só pensava se você ainda batia.
Se algo dentro de você batia naquele momento
Nem que fosse um coração.
O seu falhou comigo
E falhou de vez no dia oito de Abril.
Nem ele te aguentou.
O seu coração morreu.
No dia oito de Abril.
O ano não interessa.
Eu esperava que com um coração novo
A sua memória tivesse ido embora com o original
Qualquer madrugada de vento gelado ainda me lembra
E ao lembrar, você ainda vive
Com o coração velho.
Eu me pergunto se alguém dentro daquele avião no céu se pergunta se alguém o obversa
E sim, observa. E pensa:
Não faz sentido uma geringonça de metal conseguir ficar tanto tempo no céu.
No dia nove de Abril, te abriram
Em outro nove de Abril, te abriram de novo
Tiraram o coração que me gostava
Um coração mais bonito agora bate
Eu acho que ainda bate
Eu espero que sim
Eu preciso de um coração novo
E nem isso você pode me oferecer
Câncer de pulmão...
Sopro...
A forma como o vento sopra na nuca é leve e envolve todo o pescoço
A brisa me abraça enquanto pode
Da sacada eu me pergunto sobre a história de cada pessoa naqueles carros indo e vindo na avenida.
O pão na torradeira esfriou e eu me perguntava se ainda valia a pena
Quando esfriar, nunca vale a pena
A minha companheira é quem me ajuda a respirar
Ela é sólida, firme e de metal
Porém, fria.
Me identifico com ela em tantos aspectos
Já fazia uma semana que eu não ligava o celular.
Isso signifca paz
Mas também significa solidão
E solidão não é tristeza
É só a certeza de estar em paz
Pq sentimos falta de desconhecidos enquanto desperdiçamos o convívio com quem está próximo?
Se eu pudesse, trocaria o meu coração ruim por um abacate
Vai ser mais fácil de identificar as pessoas ruins
Tudo vai depender do tamanho da colherada que a pessoa der nele.
"JOEY NÃO DIVIDE COMIDA"
E nunca toque no meu abacate.
Eu liguei aquela joça espelhada.
Fazia tempo, porque não?
Eu busquei o seu nome numa rede de pessoas e cardumes
Fazia tempo, porque não?
Numa foto de horas atrás você lamentava a recente solidão
Eu me perguntava o que foi que tirou de seu marido
Que descanse na solidão agora
Eu olhei para a torradeira
Um pão fraco, frio e dispensável
Existem tantas coisas com as quais me identifico neste lugar
O telefone tocou
- Encontramos um doador compatível, você vai viver.
Vieram me buscar imediatamente.
Eu só, ali me lembro
Eu só ali, me lembro
Era uma possibilidade.
Era certeza e era real.
Os orgãos eram de seu marido
Aquele que te confortou depois que brigamos
Aquele que te manteve
Aquele que te afastou de mim
E sei que eu ajudei nisso
Foi de longe, mas eu te vi.
Eu não sei se soube, mas fui eu quem recebeu os orgãos
Algo dele vive em mim
Algo de você sempre viveu também
Mas não é justo e não é o certo.
Eu pulei da sacada e a única testemunha foi uma pão na torradeira
Frio, inútil e cansado
Eu nunca me identifiquei tanto com alguém.