Bote

Faz algum tempo que passei a voar rotineiramente num novo ambiente, o qual, a despeito do pouco tempo de convivência, tornou-se meu lar, comungando minhas intimidades e deixando minha espontaneidade extravasar, sem medos ou receios do julgamento alheio. Crédulo, acreditei, e com isso, baixei a guarda, permitindo que eu me tornasse um com o entorno, admitindo que, afinal, estamos todos no mesmo barco. Assim, desconsiderei o mal.

Continuei voando para lá e para cá, sem qualquer hesitação, achando que seria bem-vindo onde quer que estivesse. Área reconhecida, confiança dada. Nesta rede de proteção, um ajudaria o outro e a cooperação reinaria – foi o que pensei. Compassivamente, busquei inserir-me neste sistema mutualista, tirando proveito da situação na mesma medida em que a provia com minha contribuição. Logo, por inúmeras vezes, dividi os frutos do meu trabalho com os demais, aventurando-me por aí a fim de nutrir o bando em sua totalidade. Nem desconfiei que a recíproca, talvez, não fosse verdade.

Aos poucos comecei a notar finas linhas formadas entre as extremidades, as quais foram se avolumando com o tempo. Dado o meu desconhecimento, segui sem maiores preocupações, zunindo contente de um lado ao outro, focado estritamente em seguir o plano delineado. Um por todos e todos por um, eis a máxima que tinha ao meu lado, símbolo do desejo de união e companheirismo que carrego em meu peito, fundamento de cada momento de interação e ação em prol do grupo. Embriagado de sentimentos nobres, sequer dei atenção aos alertas dos mais calejados quanto às armadilhas presentes no ambiente, e continuei batendo minhas asas com toda a leveza e distração de quem não desconfia de nada.

Pois é, lembra das finas linhas? Descobri tarde demais que eram parte de uma imensa teia de aranha, tecida bem aos meus olhos para capturar insetos tolos iguais a mim, que a ela se grudam e jamais saem – vivos. Tudo sempre esteve aí, portanto não posso culpar os outros; a responsabilidade pelo erro foi minha. Fechei os olhos ao perigo e vivi como se estivesse num mundo de fantasias, ao que sucumbi às garras aracnídeas, capazes de me intoxicar e injetar seu doce veneno em minhas veias.

Fim da história? Felizmente, não. Ainda estou sob efeito da secreção venenosa da aranha, habitante temporária do meu organismo, mas são e salvo. O mal-estar ainda me consome, consequência do ocorrido, não obstante esteja vivo – e isso significa muito. Mais ainda, o modo pelo qual me livrei desta cilada: ajuda de outros insetos. Foram eles que, ao perceberem a investida do animal peçonhento sob mim, desfizeram os nós da teia e permitiram com que eu me desvencilhasse dela. Não foi o suficiente para sair ileso, mas só posso demonstrar gratidão profunda pela solidariedade deles, empecilho a um resultado mais gravoso.

Bom, agora conheço o ambiente em que habito. Não pretendo sair dele, mas certamente assumirei outra postura daqui pra frente. Frustro-me ao inserir a hesitação e o cuidado ao meu cotidiano, muito embora entenda que são necessários. A aranha continua lá, pronta para abocanhar o próximo ser pueril a pousar em sua teia, o que espero não deixar acontecer. Se depender de mim, ela morrerá por inanição. De qualquer modo, imperioso o afastamento, bem como a observação distante e atenta das atitudes deste aracnídeo, vigiando cuidadosamente sua rede de destruição e policiando-me para não me tornar tal qual o ser vigiado.

Ademais, o sistema mutualista continua, baseado nos ideais de cooperação e assistência mútua, com todos velejando no mesmo barco. A única diferença é que, a partir de agora, um tripulante foi jogado em alto-mar, deixado ao relento para não contaminar os outros com seu veneno. Viagem que segue!