O mal
Os dias, as horas, as imagens, os sons, as curvas, as retas, o mundo e o fundo, para ele, são sempre novidade. Viu o "Titanic" e "Lagoa azul" pela décima quinta vez como se fosse a primeira; esqueceu o sabor do doce e do salgado; estancou no presente. Mas desde quando mesmo? Não lembra. Qual o nome de seu primeiro amor? Em que mês e ano está? Qual o dia da semana? Segunda-feira ou terça-feira? Talvez quinta? Desconhece. Esqueceu-se de mensurar o tempo e as horas. O passado não lhe procura mais, o futuro nunca nem viu e o presente é ele mesmo, presente.
Chegou aos sessenta anos com ''algo de errado'', dizem-lhe os próximos. Ele contesta-os, pois não tem consciência do ''algo de errado'' que leva consigo. Entende-se plenamente saudável. Os cálculos já não lhe incomodam mais nem as horas nem os sons do mundo; descartou-os e se aproximou do jogo de dominó, que se tornou por demais complexo. Mas desde quando mesmo? Não lembra. Esqueceu-se de lembrar. De lembrar o dia em que faz aniversário; esqueceu o nome da cidade onde nasceu; esqueceu o amor que tem pela pesca, pelo vascão, pelo quintal de casa.
Talvez deva reconsiderar a suspeita dos que o cercam: é possível que leve consigo ''algo de errado''. Talvez um mal; mas que mal será esse que o leva para tão perto de si? Desconhece-lhe o nome e a dimensão. Talvez seja melhor assim. Talvez não seja de todo o mal, mas um mal, desses dos quais nós estamos repletos. Um mal de não viver.