Da incrível arte de silenciar em meio às atribulações do cotidiano
“- Atenção senhores passageiros: cuidado com o vão entre o trem e a plataforma”, foi a mensagem que ouvi hoje à tarde uma centena de vezes. Não, não enlouqueci, caros leitores. Apenas realizei um desejo meu: o de sentar em um desses bancos de espera que existem nas estações de trem e apreciar a movimentação das horas, dos trens, dos passageiros, da vida em si.
Diz o poeta que a vida é como uma viagem de trem. Logo quando nascemos, recebemos um bilhete e embarcamos em um dos tantos vagões que existem. Não raro, recebemos o carinho e a proteção daqueles que seguirão o trajeto conosco até o dia do desembarque final. Sim, temos o privilégio de saber que um dia seremos obrigados a desembarcar, diferente de muitos outros seres vivos. E isso faz toda a diferença.
Veio então à tona um dos versos de um famoso poema de Manoel Bandeira: “a vida inteira que poderia ter sido e não foi”. O famoso “se”: “se viajar, vou comprometer todo o meu orçamento”, “se mudar a cor do meu cabelo, muitas pessoas não vão gostar”, “se parar de trabalhar, o que será da minha vida”. Para tudo há um tempo, está assim definido nas Escrituras, uma de minhas citações favoritas: “tempo para nascer e tempo para morrer; tempo para plantar e tempo para colher; tempo para a guerra e tempo para a paz (...)”. Ter o domínio do tempo não é uma tarefa fácil. “É isso ou aquilo: é uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares”, ensina-nos Cecília Meireles.
E assim, seguimos cada um nossas viagens. Apesar de estarmos acompanhados de diversas pessoas que conhecemos no decorrer dos dias, a viagem é sempre individual e solitária. “Cada um é senhor de si próprio, deve depender de si próprio. Deve, portanto, aprender a controlar suas ações.” (Sakyamuni).
Eu escolhi ficar ali, parado, desligando-me do tempo. Queria um momento para refletir sobre erros e acertos. Sobre minhas escolhas, as velhas e as novas. Sobre a minha viagem, essa que Guimarães Rosa costumava chamar de travessia.
Abri um livro e deixei-me levar pela narrativa da personagem principal, Lola, mãe de quatro filhos no impagável “Éramos seis”. Quase no final, ela relata a triste partida de seu filho mais velho, Carlos, vítima de um câncer devastador: “E tudo se precipitou de repente. Foi a torrente que me arrastou ao fundo do abismo; nada pôde impedir. Vi Carlos depois no leito como que sumindo, tão branco, indo embora de uma vez. Clotilde, tia Candoca e a Madre estavam no quarto. O dia estava bonito, nuvens varrendo o céu; eu via uma nesguinha pela janela. Ouvia uma voz gritando, uma voz angustiada, dolorida: "Calucho! Meu Calucho!" Era eu mesma quem gritava.”
Não pude prosseguir com a leitura. Por alguns instantes, fechei o livro e os olhos, como se com isso pudesse conter as lágrimas que brotavam aos montes em meus olhos.
Lembrei-me dos entes e amigos que, sem mais nem menos, desembarcaram subitamente, levando consigo um pedaço de mim e deixando comigo a lembrança dos raros momentos de felicidade. Todas ali, reunidas em meu pensamento, um dia estiveram presentes em meu livro, no livro que todas as manhãs teço e desteço, faço e desfaço.
Tornei a abrir o livro, embora a palpitação do coração me orientasse a continuar com ele fechado. “Carlos ainda olhou para mim e sorriu com brandura. Ele me entendeu; ainda tentou falar, mas seus lábios se negaram a pronunciar a palavra. A luz dos seus olhos foi se extinguindo lentamente como a esperança quando morre nos corações; com pena de se apagar. De repente se extinguiu de uma vez; percebi que seus olhos já não viam (...)”. Nunca mais ela o teria nos braços novamente. Não mais poderia escutar as canções que ele, munido de um violão, cantava com sua voz grave e cativante após os jantares. Imperava ali, naquela cena, o silêncio.
Na estação também. O silêncio. Dois trens acabavam de partir. Olhei em torno, para assegurar-me se havia alguém ali próximo com quem pudesse conversar alguma coisa, qualquer coisa que fosse. Noto então a presença de uma senhora de aproximadamente setenta anos, cabelos da cor do tempo, andar fatigado e olhar deveras amoroso. Sentou-se ao meu lado. Antes que eu disse algo, falou convictamente:
“-O céu está sombrio e escuro, cinzento-escuro. O que foi a vida em todos esses anos? Sacrifício e devotamento. É como ver numa tarde assim de chuva, pesada de tristezas. Mas não sei lamentar; se fosse preciso recomeçar novamente, novamente faria minha vida a mesma que foi, de sacrifício e devotamento. Devo ser feliz porque cada filho seguiu o caminho escolhido.”
Como podia? Será que por acaso do destino ela lera meu pensamento e vinha ali, segredar-me isso? Quem era aquela senhora que se parecia tanto com a personagem Lola? Todas essas indagações inundavam-me o pensamento, deixando minha mente congestionada. Consegui ouvir, porém, o trem que acabava de encostar-se à plataforma. Olhei para o lado, mas não vi a expressão lívida da senhora que até então me acompanhava.
Ficou apenas ecoando em minha memória a frase: “Enquanto houver esperança, sempre haverá vida. Recomece quantas vezes forem necessárias. O segredo da vida não reside no início nem mesmo no fim, mas no intervalo: o que se faz ou o que se deixa de fazer é o que irá determinar se sua travessia será digna de ser lembrada ou não”.
O céu, como que por mágica, começou a ficar escuro e sombrio às 17 horas, fato bastante incomum. Era o sol despedindo-se antecipadamente por detrás dos arranha-céus. Para amanhã reinar absoluto de novo, trazendo-nos mais uma vez a capacidade de escolher. Ou isto ou aquilo. Embarcar e seguir o fluxo contínuo ou deixar-se ficar à beira da estação.