OSSATURA MINGUANTE

Ontem, quando a derradeira da tarde caiu na ribanceira dos recônditos do Morro do Moreno, aprumei-me para o Sarau da Academia de Letras de Vila Velha, no charmoso bairro da Praia da Costa. Diferentemente de outras edições, dessa vez comparecera alguns gatos-pingados que miaram as vozes bipolares da Arte.

Peguei no microfone e destilei as cicutas que entorpecem o meu ser de alguma coisa que pesa mais que uma pena. Destilei o absinto do náutico, a fúria dos marinheiros em tempestade, a mediunidade de quem me acompanha - permitam-me o desvario religioso: a voz contundente de Bernardo Guimarães.

Fizemos transmissão ao vivo, pelas redes sociais. Hoje, vi e revi os meus bravos companheiros e os fantasmas que pelintram nos jazigos puros de minha sensibilidade. Algo de dia raiou na protuberância física da lua, de outrora.

Fiquei a compor e decompor um tecido de ideias: colcha de retalhos, rede de conchinhas. Eu que sou advogado de profissão e a eterna criança da Casa de Verdeval Ferreira saí do evento transbordando uma certeza no peito: poeta por sacerdócio, religião.

Minha alma não vive no meu corpo. A poesia retirou-me do exílio, da predestinação. Calei a boca de Agostinho e de todos os santos que poderiam delimitar-me à insignificância desta vida que é sempre Severina. Minha alma tem mania de sair do barro pra tomar cafezinho com Antoninha, minha alma passeia a colher açucenas às margens do Itaúnas e enamorar lisbelas dentro das madrugadas de cristal, minha alma insiste em fixar gerânios nas pontas dos canhões e remexer nos vultos dos meus doces mortos.

Poeta não nasceu pra existir, poeta nasceu pra voar como condor. O céu de delicadeza tece uma sina forasteira: risca-se que nenhum lugar é meu lugar.

Italo Samuel Wyatt
Enviado por Italo Samuel Wyatt em 27/04/2019
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