Era uma vez

— Valentina, larga o celular. É o dia inteiro mexendo nesse Youtube. Quando eu tinha a sua idade, as coisas não eram assim...

— (olhando para tela do celular) E como eram, mamãe?

— Nós brincávamos, corríamos pelas ruas, líamos histórias! Na verdade, sua avó e eu, pacientemente, devorávamos vários livros.

— D e v o r a v a o q u ê?

— Devorávamos! (risos) Vem cá, me dá o celular que eu vou buscar um livro que você vai adorar.

Foi até a estante empoeirada, espirrou, procurou... voltou 3 minutos depois com a felicidade de quem encontrou uma Coca-Cola geladinha no deserto.

— Aqui, Tina: Branca de Neve!

Começa com “Era uma vez uma lind...”

— Por que essas histórias sempre começam com um “era uma vez”, mamãe?

— Por que são contos de fadas, minha princesa.

— E o que são contos de fadas?

— São as histórias clássicas das princesas, histórias fantásticas.

— E por que vocês contam as histórias das princesas começando com um “era uma vez”?

— Por que lemos o que está escrito no papel, Tina. Por que um dia alguém disse que começaria assim. Posso continuar a leitura?

— Pode.

— Está certo então, vamos recomeçar.

“Era uma vez um linda princesa que morava num cast...”

— Por que toda princesa tem que morar num castelo, mamãe?

— (respira) Por que é lá onde as princesas vivem, Valentina.

— Eu sou uma princesa, mamãe?

— Claro que é!

— Então por que não moramos num castelo?

— Ai, filha, não complica as coisas! Tô te contando uma história de ficção.

— Ahhh... E o que é uma história de ficção?

— É uma criação fantástica, meu amor. Uma história que não existe.

— Não existe? (alerta de testa franzida)

— Não no mundo real.

— Se não existe no mundo real, é uma história mentirosa, mamãe?

— Mais ou menos. Digamos que sim...

— Mamãe, você falou que não podemos mentir.

— Falei sim, Tina. Mas aqui – apontando para o livro – tudo é possível.

— É só aí que tudo pode acontecer? Na história das princesas?

— Sim, Valentina. Só aqui.

Mais 5 segundos da operação Tico e Teco na cabeça.

— “Era uma vez um linda princesa que morava num castel...”

— Eu sou mesmo uma princesa, mamãe?

— (Respira fundo e responde c a l m a m e n t e) eu já falei que sim.

— Eu também posso mentir?

— Não, você não pode.

— Então como é que a gente acredita numa história que é mentirosa, mamãe?

(...)

Livro fechado e devidamente devolvido à estante de outrora.

Paciência esgotada e um grito silencioso: Ahh, modernidade!

— Valentina, tá aqui seu celular. Tem o resumo da história da Branca de Neve no Youtube. Assiste lá, taokei?

Lívia Couto
Enviado por Lívia Couto em 26/04/2019
Reeditado em 27/04/2019
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