Avistava ao longe, como uma imagem desfocada a Rodovia Juscelino Kubitschek, conhecida como rodovia da morte, uma BR 040 que levou muitos que faziam parte de sua infância, entre eles sobrinhos, amigos, irmãos. Nas luzes intermitentes de socorro, sinal de mais uma tragédia, fazia uma oração par acalentar a alma que partia e tranquilizar os que ficavam pra trás, nessa corrida da vida, cujo troféu era a saúde, que ia se despedindo aos poucos, a cada ano. Quantos anos tinha, jamais saberia, porque nunca contou os passados, mas sim os que viriam, quem sabe 5, 10 ou 20. Não seria ela quem escolheria as regras do jogo, então não se propunha a sofrer por elas, mas se preparar para o inevitável, visto da janela, a olho nu, como se fosse uma sentença, na verdade era, mas o modo seria a grande diferença.

Sentada na cama de colchão duro por causa dos gritos que a coluna dava em pleno processo de caminhada, e com as pernas esticadas (as varizes vieram como herança de família e fizeram de suas pernas, caminhos tortuosos e cheios de mapas com estradas muito finas, quase incapazes de permitir a circulação natural do sangue que nelas corria, alguns por entupimento, foram sacrificados, a Safena não mais fazia parte do seu corpo) colocava sobre a mesinha de madeira feita à mão a sua máquina de costura de mão, desde que foi diagnosticada com a as doença vascular, as pernas não mais a acompanhavam em sua profissão costureira.

Abaixo da máquina de costura, entre a mesa e a cama ficava uma caixinha de papelão cortada à faca, para não cair nada, sequer uma linha, nem na cama e nem no chão, era tão organizada que nunca se viu, sequer um único fio pelo chão.

Defronte com aquela janela gigante passava o dia costurando roupinhas de crianças que fazia e montava em kits para ser vendido nas quermesses da igreja, onde a renda alcançada era doada, na íntegra, para o Bom Pastor.

No intervalos de descanso, se levantava e meio que firmando em móveis, fazia as atividades de casa. Uma vassoura de piaçava a ajudava a retirar a poeira do piso e logo depois vinha um pano úmido com álcool para arrematar a limpeza.

Na varanda, estava o seu companheiro de bodas de prata, sempre com um chinelinho branco Havaianas, e os pés tão albejados que nem parecia usar chinelo, aguardava o homem do queijo que vinha sempre às quartas-feiras após o almoço.

Coava um café em coador de pano usando um suporte de ferro com a inicial de seu nome. Aquele aroma atravessava a casa e ia chamar Mauro na varanda que esperava o queijo. Na sala uma tv de tubo com suporte frontal azul (evitava que a poeira a consumia), ligada no vale a pena ver de novo, ali à míngua, para as paredes e lagartixas que a ocupavam.

Na cozinha, sobre a mesa, um faca e um pedaço de queijo curado, e as rosquinhas de nata retiradas da lata de margarina que o vovô trouxe da padaria. Da outra lata, pipocavam biscoitos de polvilho azedo assados no fogão à lenha, no lugar que chamava de paiol. E antes que retirasse o avental feito por ela mesma, em retalhos quadriculados, cortados sob medida e com uma harmonia de cores admirável, vinha o queijo na fôrma ainda, que ela lavava e enrolava num pano de prato, deixando-o na geladeira até o dia seguinte, que seria apreciado. Os dois se sentavam à mesa e sem nenhuma palavra solta degustavam daquele banquete da tarde, olhando pela janela, por onde os carros transitavam e o barulho do sonorizador parecia dar tom. Coisas de Laura, coisas de Laurieta que no nome tinha a Mata e o doce do Mel (o).
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 26/04/2019
Reeditado em 26/04/2019
Código do texto: T6632672
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