Roda de Futebol 1968
No canto do bar, quatro cidadãos conversam animados enquanto consomem cervejas e tira-gostos com o prazer dos que não têm preocupação com a saúde. Tampouco se preocupam em esconder, dos demais clientes, o tema da sua conversa, um dos favoritos na boca da maioria dos brasileiros: futebol.
O mais baixo e gordo, com seu farto bigode coberto de espuma, tomava a palavra e dizia: “O meu Vasco...”, mas logo era interrompido por outro, um mulato forte e calvo, torcedor do Botafogo. Sem dar muito tempo ao segundo, o terceiro ocupante da mesa, que gesticulava mais do que falava, tratava de manter o Mengo no centro das atenções. Já o quarto integrante da roda de futebol, apesar de ser o mais magro, parecia só voltado para o ávido consumo da cerveja, queijos e azeitonas disponíveis sobre a mesa. Sua pele era tão alva que fazia pensar que a mãe o esquecera em uma fábrica de pó-de-arroz quando criança. Certamente correspondia à caricatura do típico tricolor.
O papo prosseguia, cada vez mais animado:
- Afinal, você tá mesmo pensando que seu timeco vai ser campeão, cara? Esquece, que o meu não deixa. Falou Mengo, disse tudo.
- Ora, não me faça rir. A freguesia vai continuar.
- Que freguesia? Prá fazer escrita com meu time, tem de rebolar muito...
- Vocês é que têm de rebolar, ô palhaço, ou pensa que seu bando de pernas de pau pode ameaçar o Botafogo? Ah, só rindo!
- Pois a sorte de ambos é que deixei minha navalha em casa. Se não, cortava as línguas fiadas dos dois!
- Melhor cortar a sua língua, seu barbeiro de subúrbio, que vascaíno tem mais é de calar a boca! Cê bem podia pegar sua caravela e ir fazer companhia ao Fluminense na disputa pela lanterna, não é mesmo, João? Ô cara, você tá muito calado! Vê se larga as azeitonas e diz alguma coisa.
- Não perco tempo em discutir com timinhos de segunda categoria. Tenho mais com que quebrar a cuca.
- Vejam só que desaforo! O trocadorzinho anda calado porque a porcaria do seu time tá na rabeira do campeonato e ainda vem esnobar os outros. Sem essa! Você deve estar quebrando a cuca em descobrir prá quem deu troco errado no ônibus.
- Por falar em ônibus, você, Ismael, já podia programar o dia de pegar no volante e, junto com o João, levar o Manuel pros três verem a entrega da Taça e das faixas ao Botafogo. Mais uma pro Gerson, que beleza!
- Gerson? Ah! E você pensa que o Bianca vai deixar? Quanta ilusão da cachorrada!
- Então você acha que o Bianca pode parar o canhotinha de ouro?
- Ora, se para, pô!
- O Bianca é de parar eu sei o quê. A defesa botafoguense estraçalha o cara se ele se fizer de besta de aparecer na área. É a melhor do mundo!
- Pera lá! Só se for depois da defesa do Flamengo! Muralha é isso, meu amigo: Murilo, Manicera, Onça e Paulo Henrique! É muita coragem vir comparar com Moreira...e outras drogas cujo nome nem sei.
- Pois eu só dou o meu Brito para barrar todos esses gajos. E...
- E o que você diz do Silva?
- Nossa! Isso ainda existe?
- Existe, sim, e vai acabar com seu alvinegro de...
- Rá-rá-rá!
- Duvida, é?
- Nããão, tô rindo de medo, lógico!
- Gente, vocês perdem tempo em discutir esse campeonato. Bom mesmo é ter dezessete campeonatos para celebrar. Só os tricolores podem fazer isso!
- É, tricolor vive só do passado. Também, ganhar dezessete títulos nas costas de uns times porcarias, que nem existem mais...
- O seu Botafogo já existia.
- Mas o Gerson, não!
- Acabou confessando: o Botafogo sem o Gerson desaparece!
- Melhor que o Vasco, que não tem um que se salve!
- Olha, pessoal, melhor esperar pelo returno, para ver...
- Pronto! Pó-de-arroz só sabe fugir...
- Corta essa!
- Corto nada! Só sabe fugir e tomar cerveja.
- Por falar em cerveja, ô Carlinhos! Traz mais umas que o returno vai começar agora mesmo.
E o campeonato prosseguiu pelo resto da noite. Quem ganhou, não se sabe, mas provavelmente foi o dono do boteco.
Traços e Troças (2015), editora Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP
Notas do autor:
1 - Texto original de 27/9/68, daí os nomes dos jogadores citados. Modificado para edição.
2 - Representantes de outros dois grandes clubes cariocas na época não chegaram ao boteco para participar da roda. O torcedor banguense ficou preso na fábrica e o do América nadou, nadou, mas encalhou na praia.