Fogo na Catedral de Notre Dame
Recebi a incumbência de informar sobre o incêndio na Catedral de Notre Dame. Por prazer de homem astuto e estoico, mas evitando divertir-me com desgraça alheia, direi ao povo que me espera sedento de notícias, que Victor Hugo com seu miserável Quasimodo, ganhou mais fama do que a própria catedral. Não mintam: a culpa foi do Quasímodo.
Que semana! Tremenda. Repleta de enchentes e cruéis desabamentos. Todos estes fatos foram motivo de incansáveis anotações. Insisto em dizer que é incompreensível aos outros confessar que a desgraça humana podia ser evitada. A grande massa vive rodando no mesmo lugar o sonho de conquista de objetos. Há fome e comida de sobra, mas a interdição da comida, combinada com custos e garantida pelos preços; gera fome e miséria na humanidade. O mesmo para certas desgraças materiais como a da catedral francesa. Mal terminou o fogo, (sem que atendessem ao conselho do Trump de jorrar água de aviões) logo choveu dinheiro para reconstrução.
Deus contribuiu economicamente através dos homens de boa-fé bem mais com o fogo da catedral francesa do que aos sobreviventes de Brumadinho. Tão humilhante certa situação espiritual para se crer em Deus... Por que ele nada fez para salvar tamanho documento de sua edificação no cenário internacional? A fama de Deus fica um pouco abalada pela lógica quando nada faz e nada evita, mas confundido com tudo o que não sofre ainda neste mundo, ele ganha pontos de louvor como invicto bonzinho. Sobra o estoicismo nesse devir maluco. Deus podia ter apagado o fogo ou impedido o drama. Mas não. Sorte dos franceses que haverão de reconstruir imediatamente a histórica construção gótica.
Já no Brasil novas tragédias englobam esse cenário desconstituído de elevação moral graças ao capital injusto, composto da maior arrecadação mundial de impostos, sobre a sociedade que sobrevive dentro dele como mendigo no futuro das aposentadorias.
Para estádios de futebol reunimos divertimentos com bonecos jogando bola e em poucos minutos vão surgindo fortunas para alegria do povo. Pronto! Vamos construir mais estádios de futebol! Hospitais e escolas jamais! Que desabem aos pedaços entre ministros meteóricos ou metódicos. Pedir dinheiro para hospitais e escolas não comove tanto como fogo em velhas catedrais.
Vou mentir ao chegar a casa dos famintos por notícias trazidas por mim. Dotado de cinismo esquecerei de propósito o que ocorreu com a vetusta catedral francesa. Vou lhes narrar envergonhado a miséria de nossos hospitais. Seguirei iludindo e trocarei o tom do assunto para a construção do mais recente e gigantesco estádio inacabado, cujo nome será Notre Dame. Em homenagem ao domínio dos franceses sobre os nossos fracassos futebolísticos cada vez mais acentuados de dinheiro e péssimos resultados. Importa nada: o Brasil é um jogo de azar nas mãos divertidas do poder.
Assim mentindo tudo estará resolvido. Surgirá de dentro de minha alma um suspiro de cansaço desse modelo informativo generalizado: notícia irrefletida é divagação para entretenimento. Por isso somos pobres e a vida sem filosofia uma espiritualidade sem graça.