A fábula
No final de cada ano letivo, levávamos nossos livros a serem descartados para a casa do velho. Ele apreciava causos e estórias e se deleitava com as ilustrações de que aquelas cartilhas estavam repletas. Um brilho de alegria quase infantil iluminava seus olhos azuis naquelas tardes quentes, nos curtos intervalos entre uma tarefa e outra, do sítio que demandava atenção constante, quando ele se deliciava com as velhas novidades trazidas pelos netos. Abundavam naquele tempo raridades de hoje como As mais belas histórias de Lúcia Casasanta ou Caminho suave de Branca Alves de Lima. Depois, em outras ocasiões ele viria repetir, enriquecendo com exemplos da vida real as estórias aprendidas nos livros. Fazia viver com muita graça o João Jiló, o João Felpudo, o nabo teimoso, Maria dos Tamancos, Chitão o macaco chorão, o Jeca Tatu, o Pedro Malazartes , o Saci Pererê e tantos outros.
Embarafustava-se pelos caminhos dos porquês e das lendas, pelo mundo maravilhoso das fábulas de Esopo e La Fontaine. Cismava às vezes de recitar e relembrava “A Enxadinha” de Faria Neto ou “O Coraçãozinho” de Henriqueta Lisboa ou ainda o “Menino luxento” de Arduino Bolívar.
Mas o melhor era ouvir suas próprias histórias, aquelas que não estavam nos livros como a da aranha e o “difrusso”. O difrusso sempre me impressionou sobretudo pela feiura do nome, nem o diabo tinha nome tão feio, aliás, Lúcifer é um nome tão lindo e expressivo que o mundo só não está cheio dele dado a má fama de seu primeiro detentor. Vim a saber mais tarde que difrusso é a deturpação da palavra defluxo, inflamação da mucosa nasal, palavra empregada frequentemente como designativo de gripes e resfriados.
Contava ele que o Sr. Difrusso estava de viagem para a cidade e encontrou-se a meio caminho com D. Aranha que dirigia-se ao sertão. Estranharam o fato porque meses antes haviam se encontrado no mesmo lugar quando cada um fazia o caminho contrário. Quis saber D. Aranha porque o Sr. Difrusso voltava para a cidade, este explicou que a experiência de atuar entre os sertanejos não fora das melhores, o homem do campo não se incomoda com gripes e resfriados, eles os curam com alimentos fortes e trabalho pesado, na roça o difrusso não tem vez, ao passo que entre o povo da cidade uma gripe é razão para alguns dias de cama, sopinha, isso ou aquilo. D. Aranha por sua vez explicou que sua aventura na cidade também havia sido frustrante, nos centros urbanos as senhoras tem muito tempo para limpar suas casas, a mínima teia avistada num canto de parede causa verdadeiro horror e logo sofre a intervenção de uma implacável vassoura. Na roça as mulheres, atarefadas com sua invariavelmente numerosa prole e os muitos afazeres nem se dão conta da urdidura das aranhas que podem tecer tranquilas.
Muitas outras histórias guardo daquele tempo sem ter muita certeza se são frutos mesmo de sua veia artística ou que ele tenha ouvido ou lido em épocas remotas. Sei que, de qualquer forma, mesmo não sendo de sua própria criação ele as adaptava para que pudessem se tornar lições, quando tais fossem necessárias.