Os santos de casa não fazem milagres
Todos os dias a poesia vibra nas coisas do mundo, mas não diante dos olhos de todo mundo. É preciso ter olhos sutis, quase divinais, para pousarem na confusão e verem ali a beleza que o engano produz; ter olhos compassivos para ver as veredas endireitadas onde se pode conduzir o outro, guiado por mãos quase santas; ter olhos que não vêem o mundo estando no mundo. Então vamos caminhando desalentados, vendo a pobreza, a loucura e a estrada deteriorada que parece nos deixar andando em círculos. Mas somos, vez por outra, arrebatados desse reduto de mortos-vivos, e guiados por corações de anjos que nos trazem em pílulas, fragmentos de um tempo que não vemos passar. Esses momentos acontecem quando paramos diante de um belo quadro, ouvimos uma bela canção ou sentimos a fragrância das flores, mesmo que estejam num pequeno jardim. Esses momentos são cada vez mais raros mas estão também cerrados nas páginas de um livro de poemas ou na pausa da diária meditação. Quando nos entregamos a eles queremos nos deixar ali quase que inertes. Mas eis que de repente o filho chega e traz num sorriso e na fala coloquial a quebra de um daqueles instantes especiais ou então, o telefone nos chama. É a nossa mãe idosa contando do que ouviu na homilia dominical ou ainda, a campainha soa pelas mãos da vizinha que traz, no seu pratinho emprestado semana passada, a retribuição cheirando a banana com canela.
E o nosso primeiro instante é torcer o nariz por voltarmos abruptamente ao mundo normal, de gente normal que vivem coisas normais.
Então, como um sonho que esquecemos ao despertar, caímos na crueza do dia-a-dia sem ao menos perceber esses outros anjos que nos trazem comprometidos, os milagres da poesia de cada dia.