O miado

Numa tarde qualquer, de um dia qualquer, após cumprir um compromisso qualquer, o celular se fez necessário, para chamar um motorista qualquer, de um aplicativo qualquer. O Renault Logan, de cor branca, chegou logo depois.

Motorista: Boa tarde, Senhor! Desculpe o atraso. Um outro motorista fechou a avenida Brigadeiro Eduardo Gomes.

Eu: Boa tarde, amigo! Sem problemas.

Motorista: Sinta-se à vontade. Tem balinhas aqui.

Eu: Obrigado! Muito engraçada a buzina do seu carro, imitando um miado.

Motorista: Miado?

Eu: É, um miado. Sua buzina imita um gato.

Motorista: Não, meu caro.

Eu: Uai.

Motorista: ...

Eu: Você não está escutando?

Motorista: ...

Eu: O miado? Escutou agora?

Motorista: É, realmente. Agora que você comentou, eu prestei atenção. Que estranho isso!

Eu: Pois é. Desde que entrei no seu carro estou escutando um miado.

Motorista: Não é possível.

Eu: O miado está ficando alto! Repare.

Motorista: Verdade. Que estranho!

Eu: Cara, você está arrastando esse gato! Por favor, dê uma parada.

O motorista para o carro. Abre o capô, olha debaixo dos bancos, verifica o porta-malas. Nada.

Motorista: Que coisa! Não encontrei nada!

Eu: Vamos em frente. Talvez o gato tenha descido.

Motorista: É, talvez.

Eu: Vamos acessar o Anel Rodoviário de Belo Horizonte. Quando ele não está congestionado, é uma boa opção.

Motorista: OK.

Eu: O miado voltou.

Motorista: Também percebi. Deve ser gato pequeno, filhote.

Eu: Como ele entrou?

Motorista: Não tenho ideia. Não há lugar onde ele possa ter entrado.

Eu (bem-humorado): Talvez não tenha gato algum. Talvez seja um fantasma, um poltergeist.

Motorista: Deus me livre...

Eu: Uai. É possível. Você atropelou algum gato dias atrás?

Motorista: Não, não...

Eu: Talvez você tenha atropelado algum gato dias atrás... E o espírito do gato resolveu morar no seu carro.

Motorista: Deus me livre, senhor!

Eu: Isso é perigoso. Você deveria exorcizar o seu carro. E se o gato fantasma voar no seu pescoço durante uma ultrapassagem, numa via movimentada, como esse Anel Rodoviário?

Motorista: (risos nervosos)

Eu: Isso me lembra de um filme. Já assistiu "Cemitério Maldito"?

Motorista: Não lembro de ter assistido. É bom?

Eu: É um clássico dos anos 80! Acho que terá uma refilmagem inclusive. É sobre um cara que enterra o gato da família num cemitério que fica próximo de sua casa. Porém, o gato ressuscita de forma medonha. Então, o filho do cara morre atropelado e o que ele faz? Enterra o garoto no mesmo cemitério. Coisas sinistras acontecem depois...

Motorista: Eu não gosto muito desse tipo de filme. Prefiro ficção científica, sabe? Filmes de naves explodindo no espaço, tipo Star Wars. Também gosto de filmes de super-heróis. Fui ver "Capitã Marvel" recentemente. Você viu?

Eu: Vi sim. Levei minha filha. É bom. Tem um gato estranho nesse filme também.

Motorista: Verdade.

Eu: Os miados voltaram.

Motorista: Sim. Está bem baixinho agora o som.

Eu: Será que ele entrou no motor?

Motorista: Impossível. Ele seria torrado.

Eu: Tem certeza?

Motorista: Absoluta.

Eu: O miado está alto agora! Ele vai morrer, coitado!

Motorista: Vou parar de novo o carro.

Eu: Você quer uma lanterna? Tenho uma no celular.

Motorista: Sim. Acho que vai ajudar.

Após sair do perigoso Anel Rodoviário, o motorista estaciona o carro. Volta a abrir o capô. Ilumina os fios e engrenagens. Se deita no chão, apontando a lanterna para debaixo do veículo. Se levanta com a roupa suja. Abre novamente o porta-malas. Ilumina. Analisa de novo por debaixo dos bancos. Abre o porta-luvas. Enfim, nada. Apenas um silêncio enlouquecedor.

Eu: Isso não faz sentido.

Motorista: Verdade, não sei como resolver isso. Peço desculpas ao senhor por essa situação inusitada.

O carro é ligado. Segue a viagem. Não tarda muito e os miados retornam, esparsos, mas constantes.

Motorista: Acho que terei que ver esse problema quando chegar em casa, de madrugada.

Eu: Amigo, se o gato ficar muito tempo no seu carro ele poderá vomitar ou morrer. Irá te causar transtornos.

Motorista: Verdade. Talvez eu encontre um mecânico aberto depois de terminar sua corrida.

Eu: É possível, mas pouco provável que você encontre. Afinal, já passam das 18 horas. Você diria ao mecânico que o carro está com miados?

Motorista: Não sei... é uma situação estranha. Veja! Os miados voltaram! Acho que ele está na frente do carro, dentro do motor!

Eu: Ele teria virado torrada, não?

Motorista: Tenho que conferir.

O motorista para novamente o carro. Repete-se o ritual. Pessoas andando na rua olham curiosas. Eu empresto novamente a lanterna. Nada. Tal como nas outras vezes, quando o carro estaciona, os miados emudecem. O motorista entra novamente no veículo, com um semblante derrotado.

Motorista: Não entendo... não entendo...

Eu: Olha, fique tranquilo! Quando terminar a corrida, te ajudo a procurar o bichano.

Ao som de miados, já de noite, cheguei ao meu destino. Encerrei a corrida. Pagamento autorizado. Peguei a lanterna. Verifiquei novamente debaixo dos bancos. Desci do carro e, com o auxílio do motorista, conferi o porta-malas. Abrimos o capô. Com a lanterna, procurei iluminar cada canto. Me abaixei. Olhei debaixo do carro (tinha que estar debaixo do carro!). Quando percebi, eu estava deitado na rua. Nada de gato. Deitei do outro lado do carro. Nada. Deitei atrás do carro. Nada. Deitei na frente do carro, iluminando. Nada. Ao me ajoelhar, me levantando, exatamente na frente do carro, escuto um miado, do lado de minha orelha.

Eu: ele está no motor! Eu escutei!

Motorista: Não é possível! Eu olhei!

Na frente do carro, havia entradas de ar. Iluminei as mesmas. Nada. Tateando, com medo de me queimar, enfiei a lanterna entre os fios. Nada. Por fim, deitei minha cabeça, olhando para baixo e para a frente do carro, num ângulo estilo "O Exorcista", e lá estava ele! Um gatinho preto (mesma cor do gato do filme "Cemitério Maldito"), olhos amarelos, acuado, num espaço minúsculo, entre a entrada de ar da frente do veículo e os fios e engrenagens.

Eu: Olha ele aí! Veja!

Motorista: Caramba! Como ele foi parar aí?

Eu: Não tenho ideia. Você quer tentar puxá-lo?

Motorista (assustado): E se ele me morder? Aliás, meu braço não entra nesse espaço...

Eu: Segure a lanterna, iluminando aqui. Tentarei puxar ele...

Gato: RRRRRRRRRRRR

Eu: Droga!

Motorista: Ele é bravo!

Eu: Muito! Deve estar assustado. Vou ver se o porteiro ali daquele prédio tem uma luva para me emprestar. Já volto.

Porteiro: Boa noite, Senhor!

Eu: Boa noite, amigo! Você não teria, por favor, luvas para me emprestar?

Porteiro: Acho que tenho aqui um par, que o zelador utilizou mais cedo para podar as plantas do jardim. Por que precisa de luvas?

Eu: Vou tirar um gato do motor do carro do motorista de aplicativo.

Porteiro: ...

Eu: Obrigado! Te devolvo daqui a pouco.

Motorista: Conseguiu as luvas?

Eu: Consegui. Vou vestir e tentar de novo...

Gato: RRRRRRRRRRRR

Minha mão chegou novamente no gato. Tateando o felino, entre rosnados, consegui segurar ele pelo pescoço, com cuidado, e puxei ele para fora do capô. Sem jeito, fui obrigado a solta-lo no chão, após ele me arranhar, acompanhado de um rosnado demoníaco. O gato saiu correndo, serelepe, em direção a um matagal vizinho, de onde eu o perdi completamente de vista, desejando que ele fique bem.

Eu: Acho que você me deve uma.

Motorista: verdade. Obrigado.

Eu: Bom, boa noite para você.

Motorista: Boa noite. Por favor, aceite isso aqui.

Eu: Obrigado.

Coloquei o pagamento no bolso e fui devolver o par de luvas.

Porteiro: Então, senhor, conseguiu tirar o gato do motor?

Eu: Consegui sim! Tudo certo!

Porteiro: O motorista deve ter ficado satisfeito.

Eu: Ficou sim. Ganhei três balinhas Ice Kiss.

(09/04/2019)

Manoel Frederico
Enviado por Manoel Frederico em 13/04/2019
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