- Alô, Mônica. Tia Imaculada.
- Oi, tia. Como está a senhora?
- Bem, minha filha. Seu tio Vicente passou mal ontem. Teve um piripaque.
- Sério, tia? Não será a emoção das festividades ou uma gripinha, o tempo mudou ...(falei isso apenas para amenizar as preocupações da tia Imaculada, mas o homem de quem falávamos nunca foi um fracote. Militar reformado, eleitor convicto de Bolsonaro e dono de umas 20 fazendas de café no interior das Minas)
- Não filha, não creio. Tudo aconteceu depois que Dorinha e ele tiveram uma discussão ontem a noite quando chegávamos do Lual. E o pior é que Dorinha está triste, abatida e disse que não vai participar da colação de grau nesta noite. Estou sem saber o que fazer, minha filha. Será que não poderia vir até aqui?
- Claro que sim, tia. Só terminar o café e vou.
“Cafifa do João Pelado” (expressão que significa praga no popular) do Alfredo, só pode. Agora vou ter que vestir a minha beca e ser a conciliadora de assuntos particulares do caso reto na casa dos outros e o pior é quando "esses outros" são parentes. Tiro no pé! Certeiro. Chegando lá esperei, rezei, observei, cantei, fiz tudo para parecer natural aquela visita que, de acordo com a tia Imaculada, não poderia parecer uma armação. Mas convenhamos, quem em sã consciência bateria na porta da casa de uma formanda no dia de sua colação de grau, numa manhã pós lual para conversar sobre a vida? Presente. A sem noção que pertence ao clube de futebol SNC (cada um que tenha a habilidade de decifrar a sigla por seus próprios méritos, não quero ser taxada em vão). E café vai e rosquinha vem (essa era a parte boa) até que aparece a Dorinha como se fosse uma sequestradora, me puxando violentamente pelo braço e me levando para um quarto escuro, nos fundos da casa, onde as tralhas faziam uma espécie de escultura tipo aquelas de Bichinhos em Minas. Pede pra que sente no chão e faz um sinal de silêncio com a boca. Eu já estava muda, agora? Estava muda e com medo.
- É que estamos num caos. Contei para pai ontem que não vou ser nem oradora e nem juramentista e ele ficou revoltado, disse que não matou seus bois à toa e que se eles pudessem voltar fariam um escarcéus por tê-los matando em vão.
Eu quase morri de tanto rir, alto, muito alto até que o olhar de reprovação de Dorinha me trouxe de volta numa espécie de laço fatal de um boiadeiro arretado. Era só isso, Dorinha. Ah. Pode deixar que converso com o tio, falo que a escolha se dá pela maioria, votação. Que tempestade no copo de água! Vou lá.
- Não espere aí. O pior você ainda não sabe. Preciso desabafar. Tenho que lhe contar um segredo.
De prima/irmã agora já recebia a classificação de amiga/confidente e como presente teria a honrosa alegria (presentinho de grego) de guardar um segredo de uma prima toda engomadinha no dia de sua formatura. Já sabia que não podia ser lá grandes coisas depois do episódio anterior. Liguei o foda-se e deixei rolar ao som de Janis Joplin.
Agora sim, "tretei" com Deus, estou pagando em parcelas os pecados que cometi, antes era só uma priminha de quinta categoria até Dorinha me transformar na advogada do diabo, vestida de Prada, com didática, prestes a me tornar um cadáver, gelada, assustada e sem fôlego. Mas a história era dela e lá vou engolir o bilhete da sena premiado. Morro rica, mas sem nenhum inimigo. Aconselhei da melhor maneira possível. Mas como não vendo ideia, ela preferiu a fantasia. Só me restava torcer para que tudo acontecesse como se fosse um sonho. No fundo era.
Noite linda, todos reunidos e o nome de Dorinha foi aclamado de forma calorosa. Abraços dados e partiu festa. Os bois não estavam lá à toa, imagine que eles se revoltem sobre a mesa e saiam tablefando os convidados?No dia seguinte, domingo era o atípico baile (na segunda-feira era feriado) então minha sina terminaria ali, no momento mais signifcante.
Dorinha estava eufórica, se excedeu na bebida, misturou caipirinha com vinho, a Absoluta estava no copo e o Wisky na taça, terminou numa Havana, ea festa. E pra colocar fogo no parquinho e criar coragem bebeu uma Skol Ice e criou coragem. Bem no meio da festa me arrasta e pede pra chamar seu pai senão faria uma escândalo. Não podia nem imaginar que ela se excederia a este ponto, mas por via das dúvidas, fui. Tomou a cachaça da verdade e foi logo cuspindo o fogo:
_ Pai, desculpa. Eu pequei, mas não posso continuar com essa farsa. Eu não estou formando em medicina. Apenas pude participar do evento para ilustrar, por consideração e benevolência da faculdade, já que comecei com esta turma, pelo jeito que as coisas estão indo ainda levo de dois a três anos para me formar. Eu não aguento mais este peso. Nunca quis fazer medicina, nunca quis morar na França, nunca quis viver esta vida cansativa, exigente, dolorosa.
Ali, atônita, estava a minha pobre alma, numa mistura de tristeza, compaixão, raiva. Não! Essa não era a Dorinha da família, a menina linda, recatada, estudiosa, feliz, a nossa pedra preciosa.
Tio Vicente, calado, colocou sobre os ombros dela  sua mão e respirou fundo. Continuou na festa como se nada tivesse acontecido.
Quando tudo acabou chamou Dorinha e disse em tom meio abafado: O problema Dorinha não é a sua farsa, mas é a certeza de não mais confiar em você.
Anos depois Dorinha montou seu consultório numa cidade do interior de São Paulo e tem uma banda de música. Casou-se com Alfredo. E jamais esqueci daquele dia, do olhar do Tio Vicente. Ele nunca mais me olhou do mesmo jeito, aliás nos olhos, nunca mais o vi olhar para ninguém.

 
Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 11/04/2019
Reeditado em 11/04/2019
Código do texto: T6621218
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.