Os silenciados

Eu tinha intenção de ir a pé, que andar a pé é uma das sete maravilhas do mundo (p.s: quando a distância não é longa), mas resolvi pegar um coletivo, por está atrasado e por ser sexta-feira. E eu não aprecio muito sextas-feiras. Para mim, elas traduzem ar pesado e leviano, diferentemente dos sábados. Isso é apenas superstição minha, de alguém inclinado à loucura precoce. Mas deixemos esses pormenores e vamos ao ponto central de uma das questões que mais me incomodam atualmente: a passividade dos letrados em geral acerca da existência dos iletrados, dos que não dominam a escrita. Esses cidadãos iletrados estão sendo silenciados e massivamente excluídos da vida urbana e da política.

Meu dentista trata naturalmente de dentes, conhece-os pelo nome, pela raiz, espessura, mas possivelmente desconhece a arte dos açougueiros. Desconhece onde fica no boi o coxão mole, o coxão durão, o garrão, a alcatra; desconhece a temperatura ideal em que deve ser conservada a carne e outras particularidades que, para os açougueiros, são conceitos básicos. Igualmente a mim, desconhece a arte dos pedreiros, mas vivemos embaixo de teto e rodeados por paredes construidos por pedreiros.

Um sabe onde fica o véu palatino, o outro oração subordinada substantiva objetiva direta, mas ambos desconhecem a arte que há por trás de um muro. Não sabemos levantar muros de cimento armado, a quantidade de cal necessária para pintar uma parede de dois metros quadrados, tampouco aprumar, nivelar e alinhar as alvenarias. O que são alvenarias mesmo?Assim, por que devemos censurar um açougueiro que chama ''palato mole'' de "céu da boca", que não sabe oração subordinada substantiva objetiva direta? Por que silenciar a voz do açougueiro? Para mostrar superioridade em relação a acougueiro, pedreiro ou outros cidadãos que no geral vivem longe da escola e da vida política? Por que silenciá-los?

Então eu peguei ônibus lotado, como de costume e como mostra de que os excluídos, do ponto de vista dos que governam a vida política do país, devem assim continuar em uma sociedade em que se privilegia o bem-estar pessoal em vez do coletivo. O dentista me aguardava. Entrei e me pus em pé, a olhar pela fresta da janela o amanhecer na capital, que não é assim tão diferente do amanhecer do interior do Estado. Lá também há, cedinho, cachorros nas calçadas em busca de osso e de postes para as necessidades primárias; carros apressados e buzinas barulhentas; velhos em praças sem bancos nem árvores. O amanhecer na capital não difere muito do no interior, afinal em ambos quem dá o tom do dia são os silenciados: garis varrem a rua; padeiros vendem pão; os auxiliares e pedreiros deslocam-se para suas construções inacabadas... A vida segue, apressadísima, rumo ao progresso tardio.

Em meio a ela, motorista às vezes, quando o semáforo permite, encontra tempo para tirar meleca do nariz; moça com fone no ouvido rir alto e não é notada; na calçada cachorro boceja, no rádio o locutor anuncia: "Bom dia, hoje é 22 de março, faz 30 graus, sao 7h da manhã..." Eis mais um dia em que os silenciados seguirão sendo silenciados, até chegar a sexta-feira com a esperança de que o mundo lhes petence.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 11/04/2019
Código do texto: T6620713
Classificação de conteúdo: seguro