militarismo e servilismo

(texto originalmente publicado em dezembro de 2018)

Conheci certa vez dois fidalgos oficiais de exército, um francês, mais envelhecido e maduro, outro português, de meia idade. Encontrávamo-nos num evento científico, eles já não eram mais militares da ativa. Tivemos oportunidade de nos conhecer bem, fizemos juntos uma viagem de estudos de vários dias pelo Maciço Central francês. Os dois eram ótimas pessoas, tenho-os em alta conta, embora desde então, já lá se vão mais de três décadas, nunca mais os tenha encontrado. Mas não esqueço até hoje o que aprendi com eles.

Naquela viagem, conversa vai conversa vem, constatei que o francês era um fervoroso defensor do militarismo. Ele alegava que só o regime militar consegue garantir a disciplina, e com ela a ordem e o progresso. Segundo ele só a hierarquia militar consegue fazer com que cada um cumpra suas obrigações com eficiência e probidade. Contestei, argumentei que disciplina, honestidade, comprometimento e ordem podem ser alcançadas num ambiente de liberdade, responsabilidade, respeito e justiça sem a necessidade da obediência cega que é a lei dentro da caserna, onde as ordens superiores têm de ser cumpridas sem questionamento. O francês não concordou comigo, mas notei que o português, embora calado, pareceu estar do meu lado.

Mais tarde naquele mesmo dia, quando estávamos só eu e o oficial português, ele me contou sua marcante história. Ele tinha se tornado oficial muito jovem, vindo de família tradicional, na época em que todos os jovens portugueses eram obrigatoriamente enviados pelo menos por um período para as guerras de independência das colônias portuguesas na África. Ele fora destacado para Moçambique, e de lá trazia uma experiência trágica. Obrigado a seguir ordens superiores, ele conduzira um grupo de oitenta comandados a uma emboscada de morte, já quase ao final da guerra. Embora ele suspeitasse da emboscada, seus argumentos não tinham convencido os superiores, que, por certo, eles mesmos não participaram da operação. O semblante e a voz do oficial português ao contar-me essa história são inesquecíveis. Ele se considerava o culpado por todas aquelas mortes.

Lembro também da canção de 1968 que se tornou hino dos jovens inconformados que resistiam à ditadura militar no Brasil, a belíssima “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, que tem uma estrofe que diz: “Há soldados armados, amados ou não/Quase todos perdidos de armas na mão/Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição:/De morrer pela pátria e viver sem razão”. O oficial português e seus comandados encarnaram bem o que dissera anos antes a canção brasileira.

Quantas guerras, quantas ditaduras, quantas tiranias ainda teremos que viver até aprender que é possível a justiça, a honestidade, o respeito sem a necessidade da obediência cega às ordens que muitas vezes equivocam-se, pois a hierarquia é feita de pessoas, e as pessoas ora equivocam-se ora são servis a interesses inconfessáveis? Quantas agruras ainda teremos que viver até compreender que é possível construir uma sociedade de cidadãos conscientes, probos e engajados, em que instituições democráticas e sólidas garantam que o nosso lado selvagem mantenha-se controlado pelo nosso lado civilizado sem a aberração da obediência cega e do servilismo? Quantos fracassos ainda teremos que amargar até compreender que é preferível o desassossego da participação e do enfrentamento sadio de diferentes pontos de vista do que a omissão, a submissão e o servilismo que advêm do conformismo e do totalitarismo?

Há filósofos e sociólogos atuais que afirmam que nossa civilização está muito complexa, e as pessoas preferem delegar a responsabilidade por tudo que acontece a “autoridades” do que assumirem elas mesmas a responsabilidade por suas vidas e a vida da coletividade. Estaríamos nós renunciando à liberdade? Desacreditamos da possibilidade de uma sociedade livre, democrática e virtuosa? Estaríamos preferindo a obediência cega da hierarquia militar às atribulações e desafios da construção de uma verdadeira e duradoura democracia?

Napoleão, Mussolini, Hitler, Idi Amin, Pinochet, Saddan Hussein, entre tantos outros exemplos, parecem nos indicar que regimes militares são desastrosos para os países e os povos que os adotam. A sociedade é mais que seus militares. E eles, como regra, aprenderam que é preciso morrer pela pátria e viver sem razão.

Publicado no blog http://perrengasprincesinas.blogspot.com/2018/