Lúcia

Nos seus 92 anos, ela já na cama, pois não consegue andar, pede à Eloisa (sua cuidadora/técnica em enfermagem): - Eloisa, não quero ficar mais aqui, quero encontrar meu marido (que já morreu há vários anos).

O marido era um médico muito conhecido em Salvador e na época que se conheceram, não havia muitos critérios técnicos para quem o ajudasse nas funções. Por isso ele colocou Lúcia como sua auxiliar em tudo o que fazia. Se casaram e tiveram vários filhos. Ela aprendeu tudo com ele.

Mesmo tão idosa, lê ainda livros e assiste e acompanha muitos noticiários na TV. Não gosta de novelas. Sabe fazer contas como ninguém. Seu dinheiro no banco, ela sabe até dos centavos.

Nos últimos dias, teve um problema respiratório, que se agravou e teve que ir para o hospital. Depois de exames, foi constatada uma pneumonia aguda e terminou indo parar na UTI pois os antibióticos não fizeram efeito.

Ainda na enfermaria, antes de ir para a UTI, pegou na mão de Eloisa: - Não me deixe Eloisa, quero ficar com você até na hora de partir. Depois disso, faleceu no outro dia, sem Eloisa do lado, pois não era permitida pessoas na UTI.

No velório, sua tez alva no caixão, mostrava os traços finos de uma senhora de uma geração diferente, onde as esposas pariam muitos filhos (ela teve seis), e se dedicava muito ao lar e aos maridos. Mas ela soube driblar muito bem o sistema machista com suas muitas leituras diárias, o que a ajudou a compreender o mundo à sua volta. Era muito inteligente.

Eloisa chegava em casa me falando de coisas que D. Lúcia falava e que ela nunca cogitara existir. Foi um aprendizado magnífico, apesar do sofrimento da alma de quem cuida, ao ver diariamente a pessoa cuidada ser inexoravelmente se esvaindo, aos poucos, na estrada da vida que todos trilhamos.

Eu só a conheci no caixão, pois fui ao velório, pois sempre levo Eloisa aos lugares e já participei de alguns enterros e cremações de paciente dela. Eu a chamo de "Anjo da Morte", pois ela sempre pega pacientes em estado terminal ou muito velhos que não duram nem um ano de vida nas suas mãos, devido à decrepitude e doenças naturais que chegam naturalmente. Crianças e idosos, que se tornam naturalmente carentes dos cuidados dos técnicos e cuidadores e se tornam praticamente amigos amorosos.

D. Lúcia foi cremada e eu não fui ao crematório pois achei que seria algo mais familiar. Mas, durante o velório, agradeci à ela por ter aparecido na vida de Eloisa. A mãe dela morreu quando era pequena, e o pai, de câncer no fígado, o qual ela ajudou a cuidar no hospital, um dos motivos dela se tornar uma técnica de enfermagem. Sempre gostou de cuidar de idosos e principalmente, crianças, motivo de ser muito solicitada, pois Pediatria é uma área quem nem todo mundo gosta, devido aos cuidados serem redobrados e a responsabilidade aumenta muito.

Voltando à D. Lúcia, a cozinheira contava que, uns três anos de ela parar de andar, ela fazia tudo dentro de casa e todos os alimentos eram supervisionados e geralmente criticados na qualidade pois ela cozinhava muito bem e reclamava de tudo. Eloisa ouvia diariamente as histórias sobre o marido e o crescimento dos filhos, as alegrias e amarguras de alguém que viveu tanto e que passou por tantas coisas na vida. Sabia tudo sobre política. Era um livro de História do Brasil e Geral.

As feições dela no caixão não mostravam sofrimento na morte. Parecia tranquila e que tinha cumprido seu papel na terra. Parecia feliz em pegar o último trem para ver o querido marido. Feliz por estar sentindo perto de sí, todos os filhos e parentes mais próximos.

Numa área verde cheia de flores que rodeavam uma espécie de coreto com cadeiras de ferro, esperei Eloisa para levá-la pra casa. Esses lugares, tranquilos e silenciosos, sempre me fazem refletir sobre a vida e a nossa insignificância na terra. Os nossos orgulhos, apego ao dinheiro e às coisas e a falta de amor e solidariedade humana num mundo tão carente dessas coisas.

Nos despedimos de alguns familiares no caminho e trouxe-a pra descansar em casa, pois no outro dia ela tem um plantão de 24 horas para cuidar de um bebê de dois anos que nasceu cego e tem vários problemas de saúde e a mãe, se pudesse, só deixaria Eloisa cuidar, pois vê os cuidados verdadeiros e amor no coração de alguém que escolheu essa profissão tão sofrida, estressante e mal remunerada, porém gratificante, na medida que você gosta do que faz...

Abril/2019