O PAÍS DO TRAMBIQUE

Duvidamos de todos os rótulos que naturalizam o que é imposto socialmente. Como quando supomos que o brasileiro se acha inferior se comparado aos povos de países centrais. Primeiro esse sentimento não é somente dos brasileiros e, segundo,essa expressão é associada ao “complexo de vira-lata”, termo criado por Nelson Rodrigues, que comentava sobre a sensação de derrota dos perdedores no futebol. Tal complexo para Jessé de Souza é visto como um valor interiorizado por um povo com baixo nível de acesso à educação e nenhuma informação crítica.

No entanto, este complexo tem outras nuances ideológicas, quando focalizamos os diversos estratos sociais. O “viralatismo” pode ser associado a certos segmentos da baixa classe média que é conservadora e presa a suas raízes religiosas, patrióticas e familiares e, os “novos ricos”, a alta classe média. Para confirmar este viés temos as eleições passadas (2018) em que o futuro presidente da República conseguiu atrair estes segmentos, que se sentiram valorizados pela referência do candidato ao Primeiro Mundo – todos “tietes” do ideário norte-americano. Outro fator básico para o voto em Bolsonaro foi o reacionarismo destas camadas preocupadas com o fantasma da rebelião dos trabalhadores do campo e da cidade. São estas camadas que indicam o que chamamos de “ideologia das classes médias”.

O “viralatismo” para o povão tem base na falta de consciência de seus direitos fundamentais. No caso, o complexo é tão naturalizado que se resume a uma fatalidade histórica. No âmbito dos direitos temos os direitos individuais, os direitos sociais e políticos (cf.Marshall). A luta por direitos é interclassista e visa à concreta democracia. Mas não se pode analisar o sentimento de inferioridade só pelas ideias, pois tal sentimento tem raízes estruturais. A sensação de impotência dos brasileiros é porque tudo está de pernas para o ar, pois as instituições públicas que poderiam garantir os direitos estão desabando. A crise econômica não apresenta sinais de desaparecer, aumenta o desemprego e a falta de perspectivas trava a autonomia de decisões individuais. Crescem a apatia e o desânimo entre todos, afetando os que estão ocupados, pois vivem com medo do desemprego.

O desmonte institucional aumenta com a troca de atribuições entre os três poderes com a supremacia do Judiciário e o esvaziamento do Executivo gerando disputa por protagonismo. Este cenário dificulta a elaboração de diretrizes pra vencer a crise econômica e restabelecer a estabilidade dos poderes com o retorno do Executivo forte, especificidade do Estado brasileiro. A estrutura econômica tem sofrido alterações radicais predominando a informalidade no emprego, alterações na contratação de mão de obra permanente para temporária, ausência de atuação sindical, aumento das demissões, baixo nível de organização e mobilização dos trabalhadores. O setor de serviços predomina sobre o setor produtivo alterando a produção e distribuição das riquezas.

O mundo do trabalho sofreu uma reviravolta com a nova Reforma Trabalhista eliminando direitos conquistados em grande parte das empresas, que atuam agora, com o estímulo à “terceirização” firmando a ilegalidade de contratos e parcerias em todas as etapas econômicas. Estes fatores contribuem para a desorganização dos assalariados.

Os processos de “terceirização” passam a interferir nos precários direitos do consumidor, que variam desde a piora da qualidade de vida nos bairros periféricos até as pequenas fraudes que crescem no comércio e serviços das metrópoles. São fatores que alimentam o stress das pessoas e a descrença em uma vida melhor. A todo o momento, os consumidores se deparam com técnicos e donos de firmas aplicando a Lei de Gerson. Quantos brasileiros neste país tropical têm condições de provar que estão sendo lesados, e que podem lutar por seus direitos, ou serão recompensados pelo prejuízo, caso processem os trambiqueiros? As trapaças se multiplicam e levam as pessoas ao desânimo e conformismo com a decadência do país. É bem provável que este circuito de mercadorias e serviços efetuados por firmas terceirizadas, sonegadoras do Fisco, também vendam produtos de marca, peças de reposição e termos de garantia “fakes”. Não há diferença entre estas práticas e aquelas pichadas na mídia como ilegais: veja os camelôs que sofrem repressão nas ruas e, as milícias que hostilizam as periferias impondo seus serviços, e não sofrem repressão policial. Para dois pesos, duas medidas... A sonegação de impostos no Brasil é estimada em cerca de $500 bilhões de reais ao ano. (cf. Eduardo Fagnani, Carta Capital, 20/mar/19)

Quanto mais o país se afunda na crise e nos conflitos institucionais mais o conjunto da população se deixa impregnar pela resignação agravando o seu estado de ânimo. A ausência de vigor na luta dos pobres e oprimidos e o desemprego vêm acentuando a conduta individualista como postura que mascara o medo do perigo e da repressão aos movimentos sociais. Esta desesperança só faz aumentar as possibilidades de servidão humana. Um retrocesso que faz lembrar a velha tese entre “casa grande” e “senzala”.

Neste quadro cotidiano de desgaste do consumidor, como fica o cidadão frente à crise econômica e política do país? E como ficam as massas que sequer possuem cidadania sobrevivendo sem carteira de trabalho e sem a proteção sindical?Essas mazelas que levam ao aumento da pobreza, da miséria e da violência só irão contribuir para todo o tipo de controle social que impeça o despertar de uma “consciência possível” na rejeição ao projeto de desmonte atual do país.

Um dos fatores primordiais de impedimento da “consciência possível” se sustenta no rechaço à política como ação social, provocado pela desmoralização dos políticos – dos poderes legislativo e executivo – perseguidos e presos pela ideologia de combate à corrupção, comandada pelo juiz Sérgio Moro com a Operação Lava Jato, iniciada em 17 de março de 2014. É como se a política se reduzisse à roubalheira entre os altos funcionários estatais e, o povo assistisse ao espetáculo através da mídia vendo os políticos entrando e saindo das prisões, barganhando com o Judiciário e, sem saber ao certo onde colocam a grana confiscada e devolvida aos cofres públicos.

Toda esta encenação objetiva frear o entusiasmo pela eficácia da prática política e contribui para a ilusão de que nossos problemas estão centrados na corrupção, nas atuações fraudulentas dos políticos e empresários que a eles se aliaram. Se não é possível remediar, remediado está. Não temos saída viável. O povo fica mais desiludido—bombardeado dia e noite por informações que anulam seu discernimento sobre os fatos relatados.

Seguindo esta estratégia a “nova política” do governo Bolsonaro faz a denúncia sobre o “toma lá, dá cá” destes larápios e, é intencional, pois confunde o alcance da prática política que tem um amplo raio de atuação- fora das instituições- na conquista por espaços democráticos. As desinformações da mídia, o massacre das guerras, os crimes ambientais, o descaso com a coisa pública que, vigoram aqui e no mundo, colocam lenha na fogueira do crescente conformismo.

Sem uma candidatura de esquerda que galvanizasse as massas, vence as eleições um bizarro deputado de extrema-direita, que atiça o ódio de seus eleitores com um discurso racista e preconceituoso. Ganhou no segundo turno, mas se somarmos à maioria silenciosa aos votantes progressistas, mais votos nulos e brancos, este total equivale a dois terços do eleitorado. Portanto, não consideramos sua eleição expressiva como a mídia tratou de alardear. A sua vitória é fruto do efeito-demonstração com a onda retrô da extrema-direita internacional.

Sua ascensão como líder nas pesquisas não foi imediata e teve o reforço dos eleitores de classe média que, pela internet e com os refrões das passeatas e comícios, associavam o nome Bolsonaro, a um “mito”, símbolo de nova época heroica. O “mito” impressionava por ser o reflexo de seus apoiadores: nacionalistas, anticomunistas e entusiasmados com o aval dos militares e neo- pentecostais. As manifestações de rua lembravam os ruídos raivosos da Marcha com Deus pela Família que ajudou a derrubar João Goulart com o golpe militar de 1964.

Assumindo a presidência da República – um homem despreparado e fanfarrão se cerca de uma equipe de neófitos. Pessoas sem experiência política o que permite a sucessão de trapalhadas e conflitos entre os três poderes e entre os funcionários na gestão dos ministérios. Em síntese, temos na presidência um indivíduo inexperiente e sem a menor qualificação e talento para governar o país, cercado de sua trupe de várias origens, mas em grande parte, unidos pelas crenças, crendices e superstições (ver os discursos, os chistes, e twitters).

Este governo tem sinalizado a preferência por duas correntes ideológicas: a primeira do filósofo /guru Olavo de Carvalho e sua adesão entusiasmada ao trumpismo, e a segunda, do economista/posto Ipiranga Paulo Guedes com seu neoliberalismo radical. Estas duas vertentes subsidiam os interesses geopolíticos dos Estados Unidos no Brasil. Os militares e empresários estão mais inclinados ao neoliberalismo. Contudo, os conflitos internos e os embates com outras áreas institucionais podem provocar a desestabilização do governo e a urgência de substituir o presidente da República.

Os projetos feitos a toque de caixa, após a posse de Bolsonaro destacam o endurecimento do ataque aos povos indígenas, à destruição das Universidades Públicas e, fala-se de um novo pacto federativo e, de uma reforma tributária ainda indefinida. O Pacote Anti-Crime de Sérgio Moro reforça o autoritarismo militarizado. Esse endurecimento pode levar a anular a Constituição de 1988 em sua defesa dos Direitos Coletivos. Quanto ao carro-chefe da mudança – a Reforma da Previdência- com sua proposta de capitalização, sem retoque ou recuo, vai destruir a previdência pública, que será voltada para alguns privilegiados. (ver vídeo de Guilherme Boulos)

Bolsonaro em sua viagem aos USA encaminhou acordos militares que vão permitir o uso da base de foguetes de Alcântara (MA). Fala-se inclusive na criação de um imenso Protetorado Norte-Americano no Brasil. A anulação do Visto para a entrada dos ianques sem nenhuma contrapartida, o ingresso na OCDE são tentativas em aberto que podem sofrer alterações. É só dar tempo ao tempo.

É inútil esperar uma resistência imediata contra este modelo de tutela do imperialismo ianque, mas algumas insatisfações aparecem (ver pesquisa Ibope) colocando em xeque o governo antes de completar noventa dias da posse. Este sinal pode ser o primeiro de muitos outros, fortalecendo em médio prazo a resistência de amplos setores sociais em defesa da soberania do país.

No momento estamos em marcha à ré em direção ao passado. Este recuo tem a ver com a crise econômica e a mudança política tornando o futuro uma quimera. Mas não se pode desistir das alternativas que possam destruir os “estereótipos” contra o povo que interferem no imaginário social e, que nos fazem crer que o país sempre vai orbitar em torno das minorias privilegiadas. Temos de mudar de rumo redirecionando o valor da política como “ação social”, dando prioridade ao “trabalho de base” com os mais pobres no resgate de suas necessidades e interesses coletivos.

ISABELA BANDERAS
Enviado por ISABELA BANDERAS em 07/04/2019
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