SALA DE ESPERA
SALA DE ESPERA
®Lílian Maial
Hoje acordei bem cedinho, para ir a um laboratório de análises clínicas, fazer uns exames de sangue, que já vinha adiando por algumas semanas. Coisa de rotina, mas que sempre gera uma certa expectativa. O pior, para mim, não é colher o sangue, mas ter de ficar doze horas em jejum, e sair de casa sem meu sagrado café da manhã.
Escolhi um bom laboratório de minha confiança e lá fui eu toda disposta, como quem vai fazer uma visita a uma velha amiga. Para minha satisfação, o laboratório fica no prédio de um shopping, e sou “obrigada” a passar por todas aquelas vitrines convidativas, quase sempre com aquelas fantásticas tarjas vermelhas indicando liquidação.
Chego ao grupo de salas do laboratório, pego a minha senha e verifico que não estava longe de ser chamada. Sento-me calmamente entre duas senhoras perfumadas e começo a observar o ambiente.
Antigamente os laboratórios pareciam filiais de hospitais, com o cheiro de éter característico inebriando o ar, deixando os pacientes algo “aéreos”, mas com aquele enjôo típico de quem entra num nosocômio, além de escuros e com equipe sem treinamento adequado. Agora não, são todos decorados em tom pastel, para dar a sensação de aconchego. O cheiro está mais para desinfetante com fragrância de jasmim, do que para algum medicamento. A decoração é clara e limpa, com poucos detalhes. A maquininha de senha logo na entrada, embora prática e bem civilizada, ainda confunde determinadas pessoas não muito afeitas a modernidades, forçando-as a interromper o trabalho das atendentes, para questionar onde ficava o início da fila. Naqueles poucos minutos que aguardei ser chamada, notei umas três pessoas sem saber como usar a tal parafernália contemporânea.
Comecei a notar os rostos ali presentes, e a imaginar o que se passava com cada um ou, ao menos, o que estariam pensando naquele momento.
Percebi um senhor de idade avançada, porém, completamente independente (e que fazia questão de demonstrar isso), com a fisionomia contraída, denotando certa preocupação. Talvez estivesse aguardando algum resultado. Ele olhou o relógio por umas cinco vezes em menos de dois minutos. Pensei que pudesse estar esperando por alguém que já tivesse entrado numa das saletas de coleta, mas não, ele esperava sua vez.
Ao seu lado, uma senhora pálida, com um lenço amarrado bem justinho à cabeça, possivelmente para disfarçar a alopécia provocada por uma quimioterapia avançada. Ela estava acompanhada de um senhor muito atencioso, que julguei ser seu esposo.
Ao lado dele, uma criança acompanhada pela mãe, carinha assustada, devendo ter entre quatro e cinco anos de idade, abraçada a um “mais assustado ainda” ursinho de pelúcia. Isso me chamou a atenção para o sentimento de uma criança que vai colher sangue. Os laboratórios deveriam pensar nessa clientela especial, e ter mais descontração na sala de espera, uma decoração mais alegre e divertida, ou alguma sala especial para crianças, com brinquedos, vídeos e cores alegres.
Próximo a elas, estava a senhora perfumada, ao lado de quem me sentei. Usava óculos escuros, apesar do ambiente com pouca luminosidade, e ostentava um nariz empinado casual. Seu olhar, mesmo por trás dos óculos, fuzilou o jovenzinho alto e magro, pálido, e de aspecto frágil, que acabara de entrar e apanhar a senha. Ele estava nitidamente desconfortável com a análise da preconceituosa senhora, que o condenou a uma doença “de jovens promíscuos”. Quase podia enxergar seu sorriso sarcástico no canto da boca, como a torcer para que seu resultado desse positivo para um desses vírus que andam por aí.
O rapazinho, possivelmente com alguma virose oriunda da debilidade natural de sua fase de crescimento, recolheu-se a um cantinho no fundo da sala.
Do meu outro lado, a outra senhora cheirosa, que balançava freneticamente o pedido de exame, como que para mostrar ou dar indícios de sua patologia presumivelmente grave. Fiz de tudo para não ver o que estava escrito, e quanto mais eu me virava, mais ela aproximava o papel do meu rosto. No fim das contas, deveria ser algum pré-operatório de plástica de pálpebras.
Nisso entra um casal, na faixa dos 35 anos, ambos com a expressão apreensiva, tristonha, talvez fazendo exames para entenderem a razão do bebê não vir.
A campainha toca e levantam-se mãe e filha, para o registro dos exames da menina (e do ursinho). Ouço a mãe comentar com a filha que não doía nada, que era só uma picadinha de mosquito. A menina arregalou os olhinhos e sufocou o ursinho. Ora vejam, na cabeça daquela pobre criança, o mosquito deveria ser um ET imenso, com antenas pontiagudas que iriam perfurar sua pele, na mais cruel das torturas infantis. Posso estar errada, mas é um atentado à inteligência e raciocínio lógico das crianças. Que mania que as pessoas têm de inventar desculpas grotescas para o simples, que acabam mais complicadas que a verdade! Bicho-papão, mão-pelada, mula-sem-cabeça, mosquitinho-injeção... francamente! Muito mais simples dizer a verdade. Usar de psicologia que qualquer adulto é capaz de presumir, quando se trata de consolar uma criança. Que mané mosquitinho! É uma agulhinha de criança. Pronto! Uma coisinha fininha que é colocada junto da pele e que pega um tiquinho do sanguinho rapidinho. Pronto! Simples! Se a criança perguntar se dói, claro que dói um pouquinho! Mas a criança crescidinha como ela não costuma se incomodar muito não. Só os bebezinhos que ainda fazem xixi na cama é que abrem um berreiro sem motivo. E também, se a filhinha for corajosa e confiar na mamãe, será motivo de muito orgulho para o papai, a vovó, o vovô, o irmão mais velho, a titia. Já pensou? Tirou sanguinho e não chorou? Muito brava mesmo...
Estava distraída com minha campanha inconsciente em prol das crianças tratadas como amebas, quando a campainha soa e levanta-se a perfumada empinada, cujo sangue era vermelho, como o dos demais, e as fezes (ela tirou um potinho camuflado da bolsa) tinham o mesmo odor (ou pior) que as de qualquer pobre mortal.
Logo a seguir entra o casal para a coleta, e o marido, todo atencioso, conduz sua dama para a cadeira e fica ao seu lado o tempo todo. A doença pode até ser grave (o que realmente é), mas a grandeza daquele amor, daquele carinho, certamente o melhor antídoto.
Chega, então, a minha vez: técnica de enfermagem supersimpática e falante, coleta impecável, sem intercorrências. Ouço o choro desconsolado da garota do mosquitinho na saleta ao lado e penso o quanto isso tudo é cruel. Lembrei-me de uma passagem com meu filho mais velho, em pré-operatório de extração de amídalas, com apenas dois aninhos. Sentei-me com ele no colo, expliquei o que ia acontecer. Ele, do alto da nobreza de seus dois aninhos, estica o bracinho por sobre a braçadeira, e permite que a moça aperte o garrote. Quando ela me acena que a seringa estava pronta, quem quase teve um treco fui eu. Dei um pinote, peguei o sapato e fingi dar uma sapatada na parede, gritando que tinha uma formiga ali. Meu filho virou-se e esqueceu do braço, perguntando: - “cadê miga, mã?”.
A mãe deu umas três ou quatro sapatadas na parede, e a coleta do filhote transcorreu sem uma lágrima sequer, apenas um desconforto, ao que mamãe retrucou que deveria ser a tal formiga se vingando. Enfim, mãe faz o que pode, mas o raio da agulha dói mais na gente, podem acreditar.
Saio da saleta com um sorriso nos lábios e uma fome danada!
Passo por cada um dos que aguardam na sala de espera com seus problemas e desejo, de coração, que tudo se resolvesse para todos, sem dor, se possível.
Chego próximo à saída, e avisto aquela máquina abençoada de café e chocolate quente, e uns potinhos com biscoitos fresquinhos. Ah, que fome! A moça que serve o lanchinho sorri, e eu não resisti ao comentário das doze horas de jejum.
Enquanto adoçava o chocolate, chega a menininha e seu ursinho, ambos com lagriminhas nos olhos, e eu comento que o tal mosquitinho não era fácil. Ela não me dá bola. Ofereço um biscoito, ela rejeita e se agarra na mãe. Falo que ainda amassaria aquele mosquito. Ela esboça um sorriso tímido e sofrido. Mas eu juro que vi o ursinho piscar pra mim!
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