Homo sapiens ou homo erroris?

(texto originalmente publicado em novembro de 2017)

O livro "A segunda guerra fria", do brasileiro radicado na Alemanha Luiz Alberto Moniz Bandeira (falecido no dia 10 de novembro último), nos alerta sobre o uso recente de uma estratégia milenar: iludir, dividir, para governar. Moniz Bandeira nos mostra com uma incomparável riqueza de fontes que, desde a queda da União Soviética, os candidatos a potência com total hegemonia do poder mundial (EUA) têm repetido um mesmo expediente para alastrar seu domínio sobre países estratégicos que tinham governos indesejáveis e/ou eram portadores de riquezas naturais indispensáveis para a dominação do mundo: Geórgia (2003), Ucrânia (2004) e Quirguistão (2005) na Ásia Central, a Primavera Árabe (2010-2012) que devastou os países do Norte Africano e Oriente Médio. Essas regiões são de altíssima relevância estratégica, por constituírem territórios com enormes reservas de recursos energéticos e minerais, e pela posição geopolítica.

As táticas de desestabilização de governos legítimos mas avessos à expansão estadunidense foram semelhantes: formação e financiamento de grupos de ativistas radicais e ONGs de oposição, financiamento de campanha de políticos oposicionistas, domínio da mídia e maciça campanha de desmoralização institucional e governamental, financiamento de “guerras psicológicas” operadas pela mídia visando desestabilizar governos e dividir a população dos países. Essas táticas visaram derrubar governos sem a necessidade de dispendiosas intervenções militares, como no caso do Afeganistão e do Iraque.

O livro de Moniz Bandeira foi concluído em 2013, e republicado no Brasil em 2017. Ele não chega a abordar os golpes em Honduras (2009) e no Paraguai (2012), que igualmente visaram substituir governos eleitos nacionalistas por governos mais simpáticos aos interesses estadunidenses. E muito menos aborda as transformações ocorridas no Brasil a partir de 2013.

Quais transformações ocorreram no Brasil? A partir de 2013 movimentos populares que inicialmente protestavam contra a má qualidade e alta tarifa dos transportes urbanos nas metrópoles transformaram-se em protestos contra a corrupção, o gigantismo e a inoperância do Estado e de suas empresas, principalmente a Petrobras, e de grandes empreiteiras. A mídia produzia o massacre midiático da demonização do Partido dos Trabalhadores e seus governos e governantes, da pífia economia do país, da corrupção que estaria profundamente enraizada em todo o modus operandi nacional por culpa dos governos petistas. A presidenta eleita foi afastada acusada de praticar atos administrativos utilizados por todos seus antecessores, mas os congressistas que caçaram-lhe o mandato não tiveram coragem de negar-lhe direitos políticos, pois tiveram vergonha de condenar politicamente uma estadista com uma estatura ética muito superior à deles.

E no lugar da presidenta deposta assumiu seu vice. Que logo se mostrou a pessoa certa para ocupar o papel esperado por quem patrocinou, do exterior, o golpe sem guerra no Brasil. O “ajuste” das contas públicas está sendo realizado pelo viés da limitação de investimentos em infraestrutura e serviços básicos, reforma do ensino restringindo disciplinas reflexivas e críticas, modificações na legislação trabalhista em prejuízo do trabalhador, reforma da previdência em prejuízo da aposentadoria do cidadão comum, descapitalização da Petrobras e loteamento das imensas jazidas de petróleo do pré-sal, privatização de serviços estratégicos de energia e saneamento... Mas imprescindíveis ajustes na tributação dos rentistas e dos mais ricos, nas privilegiadas aposentadorias de políticos, juristas, militares e outros, nas leis que regulamentam as eleições e os políticos... estes estão fora da pauta de discussões.

Ou seja, no Brasil não nos comportamos de forma diferente dos outros países que, desde o início deste século, têm trocado governos nacionalistas e legitimamente eleitos por governos que estão loteando as riquezas nacionais e explorando seus trabalhadores. E, pior do que lotear as riquezas, estão nos dividindo, quando conseguem transformar diferenças ideológicas em motivo de violência e agressões. Devíamos estar mais atentos a quem são nossos verdadeiros adversários, que merecem nossa indignação e nossa condenação.

E, talvez ainda pior: como o povo de um país pode valorizar conduta ética e responsável, se de seus dirigentes vem um exemplo tão carregado de desmandos?

Está na hora de deixarmos de ser Homo erroris, e tornarmo-nos Homo sapiens.

Publicado no blog http://perrengasprincesinas.blogspot.com/2017/