VIAJANDO COM OS "NARRADORES DE JAVÉ"
Quando se refere “aos santos do sacrifício”, Zarqueu me faz voltar o meu filme para reviver algumas cenas da escolinha primária, lá no Alto do Boi, bairro do Jacintinho, onde fui alfabetizada por dona Eugênia, professora particular, em que, num galpão, de coberta de palhas, construído ao lado da sua casa, ela ensinava, no mesmo espaço, desde a Cartilha do ABC, às séries do primário e ginásio, hoje ensino fundamental. Crianças menores, maiores, meninos, meninas, moçoilas, rapazes, negros, brancos, todos pobres, todos juntos. Mesas imensas dividiam os alunos, sentados em bancos compridos. Na parede, um quadro negro, enorme, onde dona Eugênia dividia as anotações por série. Era assim que funcionava: enquanto uma turma “cantava” a lição do livro, ou a tabuada, outra acompanhava a explicação no quadro, uma outra copiava o “dever” e mais outra respondia as arguições. Era uma “harmonia sonora”. A professora dona Eugênia se esgoelava, mas o ensinamento e o conhecimento ministrado a gente carrega pro resto da vida como o respeito e a solidariedade. Na escolinha de dona Eugênia eu cantei e me familiarizei com o Hino da Inconfidência, o Hino Nacional, o Hino da América, o Hino do Soldado, O Cisne Branco, e até a Marselhesa. Assim, guardamos lições como: “A preguiça é a chave da pobreza. / Quem não ouve conselhos, raras vezes acerta...”. No final do ano a gente declamava poemas pros avaliadores da Secretaria da Educação e Cultura. Lembro que declamei A Estrelinha
Vejo à noite uma estrelinha
No céu piscando, piscando
Mamãe diz que ela de longe
Pisca, pisca me chamando
Quando eu crescer, e papai
Me comprar um avião
Vou te buscar estrelinha
Na palma da minha mão.
E um amiguinho declamou Briga
Só por causa de um queijinho
Deu sincera confusão
O rato fugiu do gato
E o gato fugiu do cão
Brigam, também, muita gente
Sem ter lá muita razão
Imitando, exatamente
O rato, o gato e o cão!.
Ficávamos assim, cara a cara com a Banca Examinadora. É indescritível a meiguice e ternura com que dona Eugênia nos ensaiava. Uma voz carinhosa, um gesto meloso para corrigir nossos exageros coreográficos. Uma verdadeira mestra a dona Eugênia! Sei não! Será que isso é científico porque acabei de “botar no papel, na escrita”? Por que lembrei “das histórias das origens”? A única certeza é que isso faz parte do meu patrimônio cultural.
Ah! Antonio Biá, você sim, sabe “escrivinhar, botar as letras no papel” como ninguém! Com você, “o lápis obedece a mão e ao pensamento”, ao ponto de você dar uma força dramática própria e “florear um bocadinho” qualquer história, em qualquer versão, inclusive a história de Vicentino Indalécio da Rocha, o fundador de Javé. Com atitude inusitada, você reconta, explica, gesticula, cria sons para caracterizar Rolinha e Zé da Onça, e pasmem! Cria uma estratégia impensada quando induz seus heróis a “tirarem as alpercatas para calçarem as quatro patas do boi”, e assim, não fazer barulho. Será que foi por isso, por sua ideia que essas “alpercatas”(1) ficaram conhecidas como “xô boi”? É aquela velha historia, “quem conta um conto, aumenta um ponto!” Mas sua astúcia não agradou e você recebeu a sentença do “verdadeiro” herdeiro de Indalécio: “volte atrás e conte como aconteceu”. E como é contar um fato acontecido que ninguém nunca “escrivinhou”? Até porque, “uma coisa é o fato acontecido, outra é o fato escrito”, principalmente quando “eu conto a sua historia sem ponto e vírgula”, sem jamais esquecer e tampouco deixar de considerar, que “a história é de vocês, mas a escrita é minha”. Por tudo isso, entre os relatos sobre “o verdadeiro fundador de Javé”, você arrasou nos relatos contados sobre o do colonizador branco Indalécio, o da cabocla Mariadina, e do afro brasileiro Indaleo. Uma mistura de raças e de desvio dos espaços cênicos narrados, mas que desembocaram no mesmo foco histórico: o verdadeiro fundador de Javé. Até mesmo aquela “véia deturpadora das ideias” quis dar um pitaco para ficar na história. E não é que a danada ficou! Com a cuca fundida, você Antonio Biá, o “escrivão de prosa”, foge pela tangente e de supetão sugere que “a história é melhor ficar na boca do povo [...] porque todos têm razão.”. Portanto Biá, talvez você nem tenha pensado nisso, mas com a sua atitude, sabiamente se explica que nas manifestações das expressões populares de cultura, “não se pode tirar um sem prejuízo do outro”. Ou seja, todos querem fazer parte da história(2). E nisso o povo está certíssimo. O povo é história, salvo a arrogância do progresso, aliado ao descaso do poder público central. E vejam no que deu! A devastação de uma comunidade, de uma memória.
O encantamento de uma narrativa está na simplicidade do encadeamento lógico dos fatos, das imagens, da sensibilidade, que muitas vezes nos passam despercebidos, devido o nosso corre corre cotidiano. A gente não observa ao nosso redor. A gente não pára. Parar é perder tempo! Ledo engano! Lembram que Sócrates filosofava com seus jovens discípulos e de repente, passava horas estático? “[...] ele tá contando do jeito dele”, pensavam seus discípulos. Mas a arte, assim como a vida, exige que pratiquemos esse “distanciamento” tão necessário para desenvolvermos “o olhar plural” e refletirmos sobre o que está à nossa volta. Em nosso entorno. Refletirmos sobre o que nos envolve é essencial. Observar nossos filhos, casa, familiares, amigos, animais de estimação, vizinhos, o rio, a igreja, a praça, etc e tal, é fundamental. Pois tudo isso é a nossa história. Até porque, a nossa memória afetiva guarda um acervo imensurável de fatos e momentos que marcaram e marcam a nossa vida. A um simples estímulo aflora em nossa mente um momento existencial bom ou ruim. Este estímulo age como um in sight, como uma luz que nos incita a repensar nossa existência. E se estamos em um contexto novo, nosso impulso é que fiquemos inseridos no contexto.(3) Tudo isso é instintivo e natural. É o poder da oralidade. É uma herança cultuada por nossos ancestrais, por esta razão desenvolvemos esse poder de inserção na oralidade do contexto histórico da situação narrada. A cada geração, uma situação é acrescida para se chegar ao fato acontecido. Até porque, na oralidade, toda história “pode ser lida e relida”. Por isso, quando o contador de historias “conta um conto e aumenta um ponto”, ele se insere no contexto, mas não ousa alterar o foco principal da sua narrativa. Essa atitude, a de se inserir no contexto, se faz necessária, para caracterizar o que podemos chamar de estilo próprio. Cada contador de historia busca criar um aparato próprio para se apoiar e poder transmitir, a bel prazer, suas narrativas de forma personalizada. Expressões corporais. Emissão de sons. Caras e bocas. Cantos. Figurinos. Maquiagem. Símbolos. Adereços. Tudo isso é usado para convencer. “É isso!”.
NOTAS/REFERÊNCIAS
1 – “alpercatas” = alpargatas MICHAELIS: minidicionário escolar da língua portuguesa. S.Paulo.Melhoramentos, p 29, 2000
2 – cf. NARRADORES DE JAVÉ. Filme. Direção de Eliane Caffé, 2003.
3 – Destaques em negrito de algumas expressões/ditados populares usados nas décadas de 1970/1980, para remeter aos ditados citados por Antonio Biá. Exceto os títulos dos poemas.